Hoje faz precisamente um ano que fumei o meu último cigarro — 11 de Março de 2024. No texto que escrevi para comemorar seis meses sem fumar, enganei-me e disse que tinha sido no dia 12. Ora, esse foi o primeiro dia sem acender um cigarro. Em mais de 27 anos (comecei entre os 16 e os 17).
Pode não parecer pelos parágrafos anteriores nem pelos seguintes, mas a crónica desta edição do Diga-se de Passagem é mesmo sobre a longa-metragem que vou fazer este ano.
Já da última vez tinha adiado o tema. E desta dei por mim a procrastinar mais do que o habitual (e a matutar em que sílabas calham os «r» em procrastinar, como se não tivesse um corrector no processador de texto; e depois ainda perdi mais tempo com este parêntesis). Comecei a sentir outra vez uma crescente vontade de alterar o programado. Porque seria?
Gosto de pensar que sou maioritariamente (ou minimamente) racional nas minhas decisões. Mas, como toda a gente, tenho uma montanha de superstições1. Uma delas, que não devo ter quebrado muitas vezes, é não falar dos meus guiões até ter uma versão decente para mostrar.
Sinto que se contar a história a alguém antes, está tudo estragado: já não vou conseguir escrevê-la. O que é curioso, porque nunca me aconteceu tal coisa (ou seja, não foi um tique que apanhei por experiência).
Mas, lá está, as superstições não precisam de razões. No entanto, se fosse apontar uma, talvez fosse a de gostar que os meus leitores beta2 não saibam muito (ou quase nada) sobre o que vão ler.
Mas sei que no fundo não é por isso. E a relutância em escrever sobre a minha primeira longa-metragem também advém desta superstição.
Ainda não há uma única imagem do filme que vou realizar, há imenso a fazer até lá, pelo que sinto que não devia falar sobre ele, não vá o «feitiço» quebrar-se. E, para mal dos meus pecados, acredito e não acredito nisto.
O equilíbrio que consigo encontrar entre as duas crenças é escrever sobre o que já está feito, deixando o futuro sossegado. Portanto, vou ater-me à génese do projecto: a ideia e a escrita.
O guião vai na enésima versão e já muita gente o leu, e falei dele a ainda mais pessoas. Apesar de não estar absolutamente finalizado (alguma vez estará?), encontra-se num ponto avançado.
Se não me importaria de a contar a alguém ao vivo, não devo ter assim tantos problemas em fazê-lo aqui.
Anda daí dar uma volta
Já mencionei o meu amor (a palavra é mesmo essa) pelo texto de Jorge Silva Melo sobre o Rio Bravo (só não é o mais bonito que já li na Internet, porque o li em livro).
Amor que remonta aos tempos do meu primeiro blogue, o Fastio3.
Nesta entrada com mais de vinte anos, cito os parágrafos em que encontrei conforto num momento em que estava mais triste, em que «a vida se complicara».
Silva Melo refere-se à cena em que John Wayne se dá conta de que Dean Martin, alcoólico em recuperação, está com tremuras, cheio de vontade de beber. E inventa uma desculpa qualquer para o distrair, no caso ir dar uma volta lá fora, «ver onde é que estão os maus».
Mas há esta cena aqui. E viesse Mephisto e se calhar eu cedia-lhe não à procura da juventude ou da Gretchen de tranças (que ideia!) mas só para saber viver assim. Está lá Dean Martin e torce-se de dores por falta de álcool. Vai sair — quer beber. (Beber para esquecer, beber para beber, beber para chamar a Lei, beber para se humilhar...)
O momento é tenso.
E Wayne sabe que Martin se perderá se beber.
Anda daí dar uma volta.
À noite?
Traveling e traveling. Martin num passeio, Wayne noutro. Noite de silêncio. Uma daquelas bolas de ramos vindas do deserto e do departamento de adereços liga o campo e o contra-campo antes de emigrar para o western-spaghetti e se tornar num produto regional de Almeria. Silêncio, noite, ruídos ao longe, um batente que range, Wayne que pára, Martin que atravessa a rua e depois o burro que surge atrás de Wayne.
Anda daí dar uma volta.
E extrai dessa cena um belíssimo «ideal (tão burro! tão estupidamente católico!): saber do outro, estar disponível para o outro, saber encontrar não tanto a palavra certa, mas o gesto».
Se escrevesse que este trecho me salvou a vida seria exageradíssimo, mas a verdade é que me acalentou numa altura em que mais nada o conseguia fazer.
Provavelmente desde essa altura, fiquei com vontade de escrever um filme baseado no texto de Silva Melo, sobre a disponibilidade e a amizade. Mas o desejo só tomou forma (ou seja, tomei finalmente consciência dele) quando vi Deux hommes dans Manhattan, de Jean-Pierre Melville, muitos anos depois no Nimas.
Nem adoro o filme de Melville, que ele mesmo protagoniza ao lado de Pierre Grasset (coincidentemente ou não, a fazer de alcoólico).
Tem pouca rua e muito estúdio. A história não é especialmente interessante. Tem que ver com um diplomata francês que falta a uma sessão das Nações Unidas em Nova Iorque e a investigação da sua ausência por parte de um jornalista da France Press e um fotógrafo de tablóides.
Estes dois passam a noite a andar de um lado para o outro, à procura de pistas, a falar com este e aquela, a beber um copo aqui e ali. Confraternizam, fazem companhia um ao outro, franceses exilados na Manhattan dos anos 50.
Foi exactamente a representação da amizade masculina, este deixa andar sem direcção específica, o que me fascinou no filme.
Até porque o enredo pouco interessa. Às tantas, passa para segundo ou terceiro plano (se é que alguma vez esteve em primeiro) e só volta a ter importância nas cenas finais.
Um pouco como no Rio Bravo, ou como no filme que começou a germinar na minha cabeça.
Eu cá não sou supersticioso, mas...
Começou a germinar, mas não passou disso durante pelo menos uns quatro anos.
Quer dizer, houve uma tentativa frustrada de escrever uma peça de teatro pegando nessa ideia e numa noite de revelações com um amigo meu, mas talvez por ser «too close to home» nunca consegui insuflar-lhe qualquer vida (quis ser fiel à vida real, que jamais é suficientemente dramática).
Entretanto, lancei-me a novos (e velhos) projectos, escrevi outros guiões.
Até que me vi envolvido no catálogo da Cinemateca dedicado a Jorge Silva Melo, a convite da Maria João Madeira, e voltei a confrontar-me com o texto sobre o Rio Bravo e com a ideia de escrever qualquer coisa que partisse dele, que o homenageasse.
Ainda assim, não foi suficiente.
Um dia, a Beatriz e eu estávamos espera do metro (íamos para a festa de aniversário de uma amiga dela), quando vi ao nosso lado um actor da companhia de Silva Melo. Dirigia-se decerto para o Teatro São Luiz, onde os Artistas Unidos estavam a fazer a última encenação do director, que havia morrido semanas antes.
Achei graça à ideia de um actor que passava despercebido ali na plataforma do metro, a meio da tarde, para dali a umas horas estar em cima do palco a ser o centro das atenções perante dúzias de pessoas.
Interpretei aquele «encontro» como um sinal de que devia avançar com a minha ideia. Mais, fez-se um clique na minha cabeça: o filme seria sobre dois actores de teatro, de meia-idade, pouco depois de perderem o seu mestre, a figura tutelar da companhia de que faziam parte4.
E lancei-me ao Anda daí — o título vem obviamente do texto de Silva Melo —, que, com avanços e recuos de que falarei numa próxima edição do Diga-se, foi ganhando forma.
Por falar em sinais, ao procurar um fotograma de Deux hommes dans Manhattan para ilustrar este texto dei com a imagem de Jean-Pierre Melville dentro de uma carruagem de metro, numa posição semelhante àquela em que o actor (que não nomeio, para não dar azar) há-de estar no meu filme.
É obrigatório respeitar sinais deste tipo. (Sim, sou mesmo muito supersticioso.)
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão é da Beatriz Marques Morais.
No domingo que vem, ainda não sei sobre o que escrever. Porventura, outra vez sobre o Anda daí, mas não queria deixar promessas que depois talvez não consiga cumprir.
Tenham uma boa semana. Até ao próximo Diga-se de Passagem.
Também acho que tenho uma intuição prodigiosa. Mas não é muito difícil argumentar que a intuição é um tipo de raciocínio quase automático (portanto, racional). E, de qualquer forma, é bem possível que esteja redondamente enganado e só tenha uma intuição assim-assim, ou até pior.
Aprendi esta há pouco tempo: um leitor beta é basicamente alguém que lê o que escrevemos para poder dar a sua impressão, fazer sugestões, apontar fraquezas, etc.
Nome escolhido, porque tinha uma garrafa de água dessa marca junto a mim quando estava a criar o blogue.
Até decidi incluir o momento de espera pelo metro no guião. Se tudo correr bem, estará no próprio filme, interpretado pelo actor que vi na plataforma. Mas é melhor não falar muito disso.
Grande texto, João. Muito obrigado.
(Entretanto, o meu Substack esteve quase para se chamar Ainda Daí Dar Uma. Já tínhamos falado sobre a crónica de Jorge Silva Melo. Esplêndida!)
Amei. O mundo precisa de mais filmes como os que você quer fazer/está fazendo. Eu acho o tema da amizade masculina (mas, sobretudo, a verdadeira) uma das coisas mais lindas, puras e humanas que há para se relatar. Creio que precisamos disso no hoje. Que seu projeto seja bem sucedido. E eu quero (por último, mas não menos importante) te parabenizar pelo seu tempo sem o cigarro! Que coisa boa de se ler! Que venham muitos mais anos de saúde para você!