O título pode parecer excessivamente chamativo, o denominado clickbait, mas o texto mais bonito que já li na Internet tem muito que ver com o assunto desta crónica, como poderão atestar.
Na semana passada prometi que este Diga-se de Passagem seria dedicado à memória e ao arquivo, assim como às maneiras como ambos podem falhar.
É um tema que me é caro. Que, de resto, já aflorei por aqui. Às vezes, sem querer, porque sou naturalmente atraído por ele. Outras, de propósito, como foi o caso da recente entrevista com José Marmeleira, sobre memórias musicais da adolescência (de certo modo, todas as entrevistas que fiz até agora foram viagens aos tempos da juventude).
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Os fantasmas do arquivo
Em finais do ano passado, frequentei a Biblioteca Nacional, em Lisboa, perto da Praça de Entrecampos. Estava a pesquisar para um projecto (que ainda conto fazer) sobre um escritor português cujo espólio artístico foi doado à BNP pela família.
Naquele edifício construído durante o Estado Novo, o silêncio exigido é interrompido de três em três minutos (às vezes o intervalo é menor) pelos ruidosos aviões prestes a aterrar no Aeroporto da Portela. As pistas ficam logo ali, do outro lado da Segunda Circular. É uma das desvantagens (talvez a maior) de se ter o aeroporto principal no meio da cidade.
O diálogo torna-se impossível. Menos mal, pensarão, visto que se trata de uma biblioteca. Mas o próprio pensamento é cortado. As janelas, enormes, estremecem, o barulho ensurdece. Nos primeiros dias, tive medo que um deles caísse em cima de nós. Lá em baixo, na pequena esplanada do refeitório, parece que o mundo vai acabar de cada vez que passa um avião.
É uma ameaça constante.
Aos poucos, habituamo-nos, concentramo-nos no que estamos a ler. Ou damo-nos conta da falta de um documento num dos dossiers que nos entregam.
Dirijo-me à funcionária por trás do balcão, pergunto pelo mesmo. Ela não sabe a razão da ausência. Agarra no telefone e liga a alguém, preocupada. Ponho meia-dúzia de funcionários em alvoroço e aproveito para ir almoçar e pensar no fim do mundo e em como se um avião caísse ali seria um terrível acidente aeronáutico-académico.
Quando volto, a funcionária recebe-me sorridente (não é a mesma que começou o processo, essa foi almoçar também). Estava descoberto o mistério. O documento tinha seguido para digitalização, até me perguntou se teria sido eu a pedi-la (não, não tinha), de qualquer maneira era óbvio, ela é que não tinha visto o «fantasma». E mostrou-me uma tira de papel branco.
O «fantasma» indica a falta de um documento num dossier.
Penso na terminologia usada na BNP e nas regras que tenho de seguir para lá entrar — a mochila tem de ficar no bengaleiro, o portátil segue num saco de plástico (e já apanhei um ou outro roto). Lá em cima, na Sala de Leitura dos Reservados, não posso ter garrafas de água, nem tirar fotografias aos documentos (embora já o tenha feito inúmeras vezes, com o telemóvel).
As proibições não são suficientes para salvaguardar os documentos. Se quisesse, poderia destruí-los ou roubá-los (não tenho qualquer intenção de o fazer). A funcionária atrás do balcão, que agora já é a original e me chama doutor, apesar de eu lhe ter dito que não o era («aqui são todos doutores, não vale a pena incomodar-se, que não vou deixar de chamá-lo assim»), está entretida com telefonemas que parecem pessoais para reparar em tudo o que fazemos ali.
Fica demonstrado que o arquivo é tão vulnerável quanto a memória dos indivíduos. Por exemplo, descubro um facto (razoavelmente irrelevante) de que, presumo eu, nenhuma outra pessoa tem conhecimento. Sou o único que sabe o «segredo». Se eu desaparecesse, a informação perder-se-ia — talvez não para sempre: outra pessoa poderia encontrá-la, mas será que se interessaria como eu?
E quem pensa que a Internet ou outros arquivos digitais conseguem imortalizar tudo e mais alguma coisa, desengane-se.
Por esta altura já se devem estar a perguntar onde anda o texto mais bonito que eu li na Internet. Afinal, foi mesmo uma maneira de atrair mais leitores. Não. Ou melhor, não foi apenas isso.
As ruínas da memória
A (nossa) memória está constantemente a ser alterada, contaminada, fabricada. Basta acedermos a uma recordação para começarmos a falsificá-la, a deturpá-la. Na verdade, já não me lembro assim tão bem do texto mais bonito que li na Internet.
Retive apenas uma série de detalhes:
Foi escrito pelo famoso crítico musical (e pensador cultural) Simon Reynolds, no seu Blissblog, há uns bons anos.
Fala da ocasião em que teve de voltar à terra natal, em Inglaterra (Reynolds vive nos Estados Unidos), para visitar uma antiga namorada no leito de morte desta. Era uma vítima precoce de uma qualquer doença terrível, provavelmente cancro.
Nas suas peregrinações diárias (uma vez que não podia passar o dia no hospital), procurou pelas ruínas de um antigo mosteiro... Não tenho a certeza de que fosse um mosteiro, talvez fosse uma abadia, perto de uns pântanos (sou capaz de estar a acrescentar os pântanos, acho que pertencem à autobiografia de Morrissey, narcisisticamente intitulada Autobiography, e não aqui — mais um documento que veio parar ao dossier errado).
O reencontro com a ex-namorada moribunda fê-lo recordar-se das vezes que ouviram «Sara» dos Fleetwood Mac juntos. Na cabeça de Reynolds, o momento em que se apaixonou por essa canção aveludada e reconfortante corresponde ao seu amor pela futura morta.
Fui ouvir «Sara» dos Fleetwood Mac. É, de facto, lindíssima. Pensava que odiava a banda, que conhecia muito, muito mal. Aqui há uns anos, percebi que gostava muito de «Albatross», o instrumental que encerra as duas metades de O Mundo no Arame/Welt am Draht, de Rainer Werner Fassbinder, mas essa canção não é do tempo de Stevie Nicks e dos casais trocados e dos ciúmes (de que ouvi falar pela primeira vez no Behind the Music da VH1), foi escrita por Peter Green, que saiu da banda em 1970, antes disso tudo. Só que Tusk, ao qual «Sara» pertence, é absolutamente incrível.
Entretanto, Reynolds pediu ajuda à mãe para descobrir o tal mosteiro ou abadia de que se lembrava. A mãe dirige-o para lá. O problema é que não reconhece as ruínas, não eram assim na sua memória. Encontrou umas placas a explicá-las e perdeu-se o mistério. Que imagem é que deve guardar de agora em diante?
A ex-namorada, que não se chama Sara, pelo menos acho que não, embora adorasse os Fleetwood Mac, morre por fim, e Reynolds volta para Nova Iorque ou Los Angeles, a cidade onde mora, para junto da mulher (que tem um nome magnífico: Joy Press1) e do filho Kieran Press-Reynolds, que é crítico de música como os pais.
Escrever o texto mais bonito que eu já li na Internet foi a maneira de Simon Reynolds preservar a memória da pessoa que amou. É o que nos dizem sempre, quando morre alguém próximo, que continuará a viver na memória. Até já ninguém se lembrar de nós. Para isso é que servem os arquivos e as bibliotecas (enquanto não ardem). Mas só alguns têm esse privilégio — os escritores e os artistas e os cientistas e os ditadores. Os filhos desses pelo menos podem acreditar que os seus mortos sobreviverão à sua morte.
Ao ler o texto pela terceira ou quarta vez, tive vontade de escrever um guião tão bonito quanto o texto mais bonito que li na Internet, que anda perdido numa blogosfera cada vez mais desertificada. Tento, mas sou muito mal sucedido. Talvez um dia adapte a história mais directamente. Imagino um homem de meia-idade, um escritor talvez, originário de uma aldeia de Trás-os-Montes ou do Alentejo, a voltar a casa dos pais, para visitar uma antiga namorada prestes a morrer, enquanto desencontra umas ruínas quaisquer.
Quando entrevistei o Luís Miguel Oliveira, o Rogério Casanova, a Daniela Rôla e o José Marmeleira, todos foram ao seu baú das memórias, remexer em recordações que já não conseguiam precisar. Marmeleira, então, está perfeitamente consciente deste fenómeno, põe-se a imaginar muitas vezes se gostaria das coisas das quais tem saudades. Casanova, esse, já nem se lembrava de textos que ele próprio escrevera anos antes, como se já não fossem dele.
Não quero reler o texto mais bonito que li na Internet. Tenho medo de estragá-lo. De estragar a minha memória. Ou melhor (ou pior), de concertá-la. E se realmente não o achar assim tão bom? O simples facto de o estar a descrever já é suficientemente arriscado.
Poderei estar assim tão enganado? Há-de haver dúzias, centenas, milhares, porventura milhões de outros candidatos ao texto mais bonito da Internet. Mas este é o texto mais bonito que eu já li na Internet. Isso ninguém pode negar. Só mesmo eu.
Não sei se resistirei à tentação de lê-lo. O mais provável é que o faça após a publicação deste texto.
Por favor, leiam-no vocês!
Digam-me se inventei coisas, se me esqueci de outras. E se acharem que não tenho razão, que o texto mais bonito que já leram na Internet não é o mesmo que o meu, digam de vossa justiça. Digam mesmo. Gostava de conhecer outros «o texto mais bonito que já li na Internet».
Uma sugestão
No televisor do restaurante passavam imagens tiradas de uma câmara acoplada ao vidro da frente de um automóvel. A filmagem acompanhava toda a viagem do mesmo. Outros carros atravessavam-se à frente, às vezes o «nosso» parava num cruzamento. Estaria a chover ou a nevar. Os limpa pára-brisas não paravam de se atravessar no ecrã.
Fui-me distraindo da conversa ao meu redor, fascinado. Decidi que mal chegasse a casa ia procurar por imagens semelhantes, mas feitas a partir de um comboio. Se existissem, seriam ainda mais interessantes dos que a do automóvel.
E, de facto, encontrei:
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão é da Beatriz Marques Morais.
No domingo que vem, sairá uma entrevista a um dos primeiros jornalistas portugueses a dar o devido valor ao Substack: António Tadeia. A sua newsletter existe desde 2019 e é um dos casos de maior sucesso no panorama português.
Tenham uma boa semana. Até ao próximo Diga-se de Passagem.
Que eu à primeira tomo sempre como o nome de uma editora de livros, como me acontece com bell hooks (essa, mais por dislexia).
Belíssimo texto e vou seguir as pistas!
"Fantasma", sim, e me arrisco a dizer que o teu texto de hoje se candidata entre os mais belos da Internet... A ponto de me ter despertado lembranças de uma feita em que também eu, já adulto, fui involuntariamente parar num sítio que tinha lugar especial em mihas memórias da infância, lembranças estas que se desfizeram a partir desse reencontro. Se calhar, escrevo sobre isso na próxima carta!