Na passada sexta-feira, dia 14 de Março, fez três anos sobre a morte de Jorge Silva Melo — cineasta, cinéfilo, actor, encenador e dramaturgo, director da companhia teatral Artistas Unidos1, amante de pintura, literatura e música. Mais do que homem «dos sete ofícios», um homem «das sete artes». Um homem de cultura, da cultura, como já não se fazem.
Em jeito de homenagem, nesta edição do Diga-se de Passagem vou falar sobre Vida de Artistas, a sua última encenação. A peça estreou-se apenas nove dias depois da sua morte, no Teatro São Luiz.
Mas também andarei à volta de Design for Living — o texto original de Noël Coward e a adaptação cinematográfica de Ernst Lubitsch (escrita por Ben Hecht) com o mesmo nome.

Design for Living
Noël Coward é daquelas figuras mais fascinantes do que a própria obra — um tipo do qual Andy Warhol talvez seja o melhor exemplo. Posso estar a ser injusto com as peças do inglês, visto que conheço apenas duas ou três (a arte do norte-americano conheço um pouco melhor e até gosto bastante).
Do trabalho de actor, ainda posso falar menos. Tenho uma vaga ideia de o ter achado interessantíssimo em Around the World in 80 Days, um filme que nem devo ter visto do início ao fim2. Mas é impossível não adorar daquele umlaut em cima do e. É tão deliciosamente pretensioso que nem quero investigar se é verdadeiro (prefiro presumir que é tão de pechisbeque quanto o «von» de Erich Stroheim).
A boa impressão causada por Private Lives, a outra peça de Noël Coward levada a cabo por Silva Melo, entre 2019 e 20203, com o nome Vidas Íntimas, deveu-se muito aos actores principais, Rúben Gomes e Rita Durão, mas também ao texto, é certo. Este inscreve-se ou talvez inaugure as histórias de re-casamento4 que iriam dominar a comédia norte-americana na década de 40. Ajuda, claro, que a tradução seja de Miguel Esteves Cardoso.
De qualquer forma, em Private Lives os diálogos são mais leves e escorreitos do que os de outras obras do autor. Blithe Spirit, adaptado ao cinema por David Lean, com Rex Harrison no papel principal, pareceu-me demasiado cínico, cheio de fel. Já Design for Living, que li agora, soterrou-me no palavreado extenuante.
É suposto as personagens serem espirituosas, divertidas, cosmopolitas, mas passam a vida a explicar-se a si e às suas intenções em extensas cenas de diálogo. Pior, repetem-se e voltam a repetir-se, contentíssimas por serem quem são — Coward escreveu a personagem de Leo, o dramaturgo, para si, e as outras duas, o pintor Otto e Gilda, para Alfred e Lynn Lunt, seus amigos. Resultado: chegam a ser verdadeiramente obnóxias (de tal forma que me obrigam a usar este adjectivo).
O primeiro acto, composto apenas por uma longuíssima cena, é fastidioso. O diálogo entre Gilda e o amigo mais velho Ernest (o quarto vértice do triângulo amoroso; sim, eu sei) é, a espaços, chatíssimo, apetece escrever «como a potassa». O espectador parte logo cansado para as duas horas que se seguem.
E, surpreendentemente, Coward não aproveita o que de mais interessante a cena tem: o facto de no quarto ao lado estar o homem «errado» e Ernest não fazer ideia, provocando o embaraço (e não só) de Gilda. O problema é que o autor também não avisa o espectador — prefere causar surpresa em vez de montar o suspense —, e perde-se a piada que podia haver.
De qualquer forma, mesmo que o conseguisse (ou quisesse) fazer, quando a peça abre não fazemos ideia de quem são aquelas pessoas, portanto dificilmente nos interessaríamos.
Uma Mulher para Dois
Ben Hecht, o argumentista de Design for Living5, o filme de Ernst Lubitsch, não caiu no mesmo erro.
Quando Tom (que na peça era Leo) está escondido no quarto que Gilda (que mantém o nome) partilha com George (que era Otto), enquanto esta fala com Max Plunkett (que se chamava Ernest), o espectador sabe quem é quem e o que está em jogo.
Este momento, que corresponde à primeira cena da peça, acontece quase a bater a hora de filme, que só tem 90 minutos (menos do que a maioria das encenações do texto de Coward). O argumento de Hecht é como que o negativo da peça teatral. Condensa-a em pouco menos de meia hora e imagina toda uma backstory nos primeiros 50 minutos.
Hecht e Lubistch mostram (e não mostram, à boa maneira do realizador) toda a história daquele trio, desde o primeiro encontro num comboio, passando pela romântica «vida de artistas» num pequeno estúdio parisiense. O que é bem mais engraçado do que ouvir duas pessoas a falar sobre o que viveram e nós não vimos — não sou purista do «show, don’t tell», mas a obra de Lubitsch é um excelente argumento a favor desse adágio.
Noël Coward disse, meio a sério, que dos seus diálogos só tinha sobrado um «pass the mustard», o que não é bem verdade, mas está mais perto dela do que da mentira. A frase «Immorality may be fun, but it isn’t fun enough to take the place of 100% virtue and three square meals a day», proferida repetidamente por Edward Everett Horton (talvez o maior dos grandes secundários da comédia norte-americana dos anos 30 e 40), nunca passou pela cabeça do dramaturgo inglês. Nem tão-pouco os nomes de Strump e Egelbauer, de Kaplan e McGuire, repetidos ao ponto do absurdo no último acto da adaptação.
Amoral e libertino, Design for Living — que em Portugal se chamou Uma Mulher para Dois — é um dos melhores exemplos do cinema Pre-Code, ou seja, aqueles filmes realizados no intervalo da criação do código Hays e da sua aplicação, no início dos anos 30.
Mesmo nos dias de hoje, a premissa permanece fértil. Nas mãos de Luca Guadagnino e Justin Kuritzkes resultou no melhor filme do ano passado: Challengers.
Dois Homens para Uma
Quando encenou Design for Living, Jorge Silva Melo chamou-lhe Vida de Artistas, um título de que gostava muito e que Maria João Madeira na folha da Cinemateca sobre o filme de Lubitsch elogia muito. Mas prefiro mil vezes o que a Maria João imaginou: Dois Homens para Uma. Parece mais apropriado do que a datada equação artistas = libertinos a que a escolha de Silva Melo parece aderir.
Infelizmente, o encenador não pôde ver o seu último espectáculo, estreado a 23 de Março de 2022. Morrera uma semana e meia antes. É verdade que Silva Melo não tinha por hábito ver as peças que encenava depois de estarem em palco. O seu trabalho acabava nos ensaios. Mas nem esses conseguiu concluir. Os actores viram-se obrigados a finalizar o processo sem ele, num esforço de todos os membros dos Artistas Unidos.
Não vi Vida de Artistas no dia de estreia, um momento, ao que parece, intenso e emotivo. Só fui na sexta-feira, dois dias depois.
A sala do São Luiz — curiosamente chamada Luis Miguel Cintra (assim mesmo sem acento no i), com quem Silva Melo fundou o Teatro da Cornucópia nos anos 70 — estava fria, desconfortável. Já não era o cinema caloroso da juventude de Silva Melo, onde este vira tantos filmes com os pais e mais tarde sozinho, depois de sair do eléctrico ali na Rua António Maria Cardoso, a dois passos da PIDE.
Tive pena de não ter gostado muito da peça. Só agora ao ler o original de Noël Coward me dei conta de que a culpa nem é da tradução de José Maria Vieira Mendes6, nem da encenação de Silva Melo, muito menos dos actores — Rita Brütt (que também tem um umlaut), Pedro Caeiro (dos melhores jovens actores portugueses), Américo Silva (com a dificílima missão de fazer o papel de Everett Horton sem o texto de Ben Hecht).
A culpa é mesmo do dramaturgo.
«Ah, como eu gosto de Noël Coward. Como quem “não quer a coisa”, com um brilho único, anda connosco há quase um século, despistando, contrariando ideias feitas, na curva da História. Frívolo? Ou realmente profundo? Fantasista ou realmente realista? Olha: teatral, aposto», escreveu Silva Melo. Quero crer que estava a pensar no filme de Lubitsch, ele que gostava tanto de cinema. (Claro que não, Lubitsch raramente era teatral.)
O encenador talvez tivesse gostado de fazer a peça com o seu querido Rex Harrison, que esteve nas primeiras representações de Design for Living em Londres (ao lado de Anton Walbrook, da dupla Powell e Pressburger).
No monumental texto sobre a arte de representar que escreveu para o ciclo Actor, Actor da Fundação Gulbenkian (pode ser lido em Deixar a Vida, publicado pela Cotovia) e tantas outras vezes, Silva Melo expressou a admiração pelos actores que deixavam por fazer, que se davam à interpretação, que entregavam parte do trabalho ao espectador.
O maior elogio que poderia proferir era dizer que alguém fazia algo «como quem não quer a coisa».
Vida de Artistas Unidos
Jorge Silva Melo estaria a marimbar-se por a sua última peça não ter sido um sucesso artístico ou de público (e por eu não ter gostado muito).
Para ele, o importante era ir fazendo. Às vezes, corria melhor, outras pior. Fazia parte.
Ficaria triste, isso sim, ao saber que os seus Artistas Unidos estão sem espaço próprio desde o Verão de 2024 e que, por isso, se encontram em risco de deixar de existir.
Na folha de sala de Vida de Artistas a companhia dedicou-lhe algumas palavras bonitas, num texto intitulado Ainda não Acabámos, Jorge:
Como dizias: «É hoje que vivemos a vida que vivemos». E é isso que estamos a fazer, que vamos continuar a fazer. E sabemos que, se aqui estivesses, estarias a fumar e a sorrir à saída do Teatro. Feliz pela vida que nos deixaste.
Que as entidades públicas (ou privadas, no lugar destas) permitam que a promessa continue a ser cumprida e arranjem à companhia finalmente uma casa sua.
Os Artistas Unidos celebrarão trinta anos em Setembro de 2026.
Sugestão e uma pitada de auto-promoção
Depois de abandonar o cinema de ficção (o seu último filme foi António, Um Rapaz de Lisboa, realizado na viragem do milénio), Jorge Silva Melo dedicou-se a documentário sobre figuras que admirava (artistas plásticos, fotógrafos, actrizes).
Dois deles — um sobre Fernando Lemos e o outro sobre Sofia Areal — estão disponíveis na RTP Play (só em território português). É de aproveitar.
A notícia da morte de Jorge Silva Melo apanhou-me a meio da escrita do meu contributo para Viver Amanhã Como Hoje, o catálogo (organizado por Maria João Madeira) que a Cinemateca Portuguesa lhe dedicou.
Se o texto já me estava a custar a sair, pior ficou.
Tinha de homenagear convenientemente a pessoa, o cineasta, o crítico, o homem do teatro... E, sobretudo, tinha de lhe agradecer o belíssimo texto sobre Rio Bravo que me acompanha há tantos anos7 (e sobre o qual já escrevi quatro vezes).
Só quando percebi que seria impossível fazer-lhe verdadeira justiça é que consegui acabar o meu texto.
Mas vou continuando a tentar, como se prova por esta newsletter.
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão é da Beatriz Marques Morais.
No domingo que vem, vou tentar explicar como se faz uma boa mixtape (se calhar, tenho de aprender antes).
Tenham uma boa semana. Até ao próximo Diga-se de Passagem.
Nome mais do que provavelmente roubado à United Artists de Charlie Chaplin, D. W. Griffith, Mary Pickford e Douglas Fairbanks.
Que vale sobretudo pelo genial genérico final de Saul Bass, que em poucos minutos volta a contar a história do filme. E bem melhor do que este.
Aliás, foi o último evento público a que fomos antes do primeiro confinamento provocado pela Covid-19. Lembro-me bem de lavar muito as mãos quando fui à casa de banho.
Por falar na comédia de re-casamento, encomendei Pursuits of Happiness, de Stanley Cavell, amplamente citado em Volveréis, de Jonás Trueba, também ele um belo exemplar do género. O livro tem edição portuguesa, que estive vai-não-vai para comprar. Pareceu-me bastante aceitável, mas a minha preferência por ler no original venceu.
Assim como de Notorious e de His Girl Friday e de Twentieth Century — bem vistas as coisas, Hecht é o grande escritor da comédia de re-casamento.
Jorge Silva Melo não se cansava de dizer: em Portugal, a «direita» das didascálias é a direita do espectador, portanto a esquerda do palco. Para os anglo-saxónicos, é ao contrário, pelo que nas traduções portuguesas de peças inglesas e norte-americanas se deve trocar a esquerda com a direita e vice-versa. E Vieira Mendes respeitou esse preceito.
Gostei muito desta singela homenagem ao Silva Melo. E lamento imenso que os Artistas Unidos continuem sem casa. É uma vergonha ainda ninguém ter arranjado uma solução.
E onde se pode ler esse texto sobre Rio Bravo?