Ao contrário do que anunciei na última edição do Diga-se de Passagem, esta crónica ainda não é sobre o filme que vou fazer — para a semana, não falha.
Como é Dia da Mãe em Portugal, vou contar uma história que envolve a minha.
Bom, é possível que a deixe triste. Quer dizer, espero que não a deixe assim tão triste. Até porque o «delito» de que a vou acusar é tema apenas de parte do texto. Até pode ser visto como um aparte.
O primeiro disco que pude considerar meu — no sentido de que foi comprado a meu pedido e mais ninguém gostava de o ouvir (acho eu) — foi «Woodpeckers from Space», dos Video Kids.
Lembrei-me dele agora, quando andei a pesquisar canções dos anos 80 para uma sequência do filme que vou realizar (mas não entrou nas minhas escolhas).
As pessoas nascidas depois de 1980 não devem fazer ideia do que estou a falar. As outras já estão com certeza a ouvir um enervante riso de psicopata na cabeça — espero não ter accionado qualquer stress pós-traumático.
«Woodpeckers from Space» teve um sucesso enorme quando foi lançado em 1985 — chegou ao número dois do top de vendas em Portugal e escalou o de outros países europeus.
Basicamente, era uma batida electro à volta de um sample repetitivo e irritante do riso do Pica-Pau1 (o Woodpecker com que a Universal respondeu aos desenhos animados da Warner Bros. e da Disney, bem mais famosos), feita por um duo de louros holandeses, que talvez fossem apenas a imagem da banda (o melhor é lerem a entrada da Wikipedia).
«Woodpeckers from Space» é o chamado novelty record, que capta o interesse de toda a gente por uma qualquer particularidade para depois ser esquecido com alguma vergonha — «Gangnam Style» será dos exemplos mais recentes deste tipo de êxito.
Discos pedidos
Os meus avós compraram-me «Woodpeckers from Space» numa loja de música nas escadinhas da Calçada Nova de São Francisco, que liga a Rua Nova do Almada e a Rua Ivens e onde foi o Amo-te Chiado (não confundir com a Calçada de São Francisco e a sua curva incrivelmente íngreme).
Na verdade, deve ter sido só a minha avó, numa das nossas deambulações semanais e matinais por Lisboa. Imagino que ela não gostasse nada da canção, se é que alguma vez a ouviu. Eu próprio não sei se gostava assim tanto dela (ou talvez venha daí o meu gosto por electrónica).
Adorava era o vídeo, com aquele boneco infatigável e saltitante com um fato amarelo e um capacete na cabeça, que não era nada parecido com o Pica-Pau original e a que chamaram Tico Tac — alteraram-lhe o nome e o desenho para não serem apanhados por disputas legais sobre direitos.
Curiosamente, na capa do meu disco (que era diferente da original), o dito cujo tinha uma indumentária diferente — estava de tronco nu e umas calças azuis presas por uns suspensórios, esses sim, amarelos.
Nem sequer sei ao certo se «Woodpeckers from Space» foi realmente o meu primeiro disco. Quero crer que sim, mas também poderá ter sido «I Just Called to Say I Love You», de Stevie Wonder, ou «We All Stand Together», de Paul McCartney.
Este último é uma forte hipótese.
O single de Stevie Wonder devia ser dos meus pais (mais precisamente da minha mãe) — foi um êxito monstruoso na altura, associado ao filme The Woman in Red, que começava com Gene Wilder no parapeito de uma janela, situação a que era levado devido à paixoneta por Kelly LeBrock (actriz que viria a casar-se com Steven Seagal).
O de Paul McCartney é um caso diferente. É bem provável que também tenha sido comprado a meu pedido. Adorava o teledisco e ficava sempre triste quando o apanhava a meio ou já no fim. E adorava a canção, que, como não sabia usar o gira-discos — achava que bastava deixar cair a agulha em qualquer ponto do vinil —, raramente conseguia pôr do início.
Discos perdidos
A minha mãe dá ao verbo «arrumar» o mesmo significado que lhe dá um gangster de um filme dos anos 40 quando precisa de se livrar de um adversário.
Às vezes faz de propósito. Por exemplo, uma vez «arrumou» umas calças de ganga castanhas que eu adorava, porque achava que estavam gastas e velhas. Quando eu perguntava por elas, respondia-me que as tinha «arrumado», da mesma maneira que dizia que um dos nossos periquitos tinha fugido quando na verdade tinha-se era ficado.
Noutras ocasiões, fazia-o acidentalmente. Acontecia-lhe «arrumar» coisas que até não se importaria de voltar a encontrar — e era um vê-se-te-avias para as descobrir num dos armários lá de casa, quando não se revelava impossível.
Ainda hoje ando à procura dos meus singles em vinil (ao menos, os álbuns continuam por lá). Para dizer a verdade, já desisti. Presumo que estejam junto às calças de ganga castanhas e ao periquito que voou pela janela.
Entre os discos, estavam os mencionados 45 rotações dos Video Kids, Stevie Wonder, Paul McCartney e outras preciosidades de que já não me recordo.
E também estava o primeiro singles dos Smiths — «Hand in Glove»/«I Don’t Owe You Anything» —, que comprei há mais de vinte anos em Londres por umas boas libras, precisamente por ser o primeiro single dos Smiths (não adoro a canção, gosto muito mais de «This Charming Man», o segundo single).
Na altura, o mundo era diferente. O Morrissey ainda não era completamente desprezível, as pessoas ligavam mais aos CD do que ao vinil e a Internet ainda não tinha massificado a pirataria digital.
Gosto de imaginar que hoje em dia «Hand in Glove» valeria uma fortuna e talvez desse para financiar umas férias luxuosas, mas provavelmente não me dariam mais de quarenta libras por ele (e já ia com sorte). Achamos sempre que os objectos são valorizados pela antiguidade, quando o importante é a sua raridade2 (não sei se é suposto tirar algum ensinamento universal a partir disto, de qualquer maneira não estou a ver qual).
Não é impossível que «Woodpeckers from Space» tenha mais valor para mim por só poder agarrá-lo na minha memória. De resto, o que é que faria se o tivesse aqui à mão? A gata sentou-se em cima do gira-discos que ofereci à Beatriz há uns anos e estragou-o, pelo que nem conseguiria ouvi-lo. Não será melhor imaginá-lo à minha maneira?
(Não, acho que preferia tê-lo. Sou muito agarrado às coisas. Apesar do que escrevi, jamais venderia o single dos Smiths.)
Uma pitada de auto-promoção
Nunca tinha ocorrido isto, mas se calhar o meu amor por «Woodpeckers from Space» resultou na vontade de fazer uma espécie de electro esquizóide no EP que concebi há dois anos precisamente intitulado Electro Luar (era o nome de uma loja de electrodomésticos na Almirante Reis e agora é o nome de uma loja de electrodomésticos na Passos Manuel).
Uma vez, há muito tempo, quando estava em Odemira, deparei-me com uma loja que também devia ser de electrodomésticos chamada Ode Eléctrica (ou coisa que o valha). Achei logo que daria um óptimo título para um álbum. Infelizmente, não tenho feito música nenhuma.
Talvez um dia regresse.
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão é da Beatriz Marques Morais.
No domingo que vem, prometo mesmo escrever sobre o meu filme e todo o processo (de aprendizagem e não só) que me levou até ele.
Tenham uma boa semana. Até ao próximo Diga-se de Passagem.
Riso maníaco por riso maníaco, prefiro o do Muttley das Wacky Races*, que até adoptei inconscientemente a dada altura da minha vida adulta.
* Que em Portugal se chamou A Mais Louca Corrida do Mundo e era mais ou menos baseado em A Grande Corrida À Volta do Mundo, ou The Great Race, filme de Blake Edwards que gostava de rever um dia destes.
O meu avó paterno tinha uma colecção de livros do Júlio Verne que os meus pais achavam que poderia valer uns bons trocos e, no fim de contas, quase tiveram de pagar para se livrarem deles.
"pica-pau" (risos)
Não conhecia nem a música do Video Kids, nem a do Paul McCartney... gostei bastante (da segunda)! Curiosamente, meu primeiro item musical foi o CD Abbey Road. Foi necessário uma economia de três meses de mesada para adquiri-lo. Tive mais sorte do que vc: tenho o CD até hoje, em péssimo estado, diga-se de passagem. Inclusive, aqui no Brasil já não se comercializavam singles na época dos CD's... a transição do vinil foi bem complicada por aqui.
Eu só nasci dois anos mais tarde e juraria que hoje foi a primeira vez que ouvi "Woodpeckers from Space", mas vejo muitas vezes com as minhas filhas desde muito pequeninas o videoclip do Paul McCartney, todos adoramos essa canção lá em casa e fez-me mesmo bem ouvi-la esta manhã, obrigada :)
PS: O meu primeiro disco foi a Heidi em espanhol (Abuelito dime tu: https://www.youtube.com/watch?v=l77rAJPtNKI). Também é uma coisa a que a nova geração não vai ter direito, desenhos animados japoneses falados em espanhol e legendados em Português (e, nalguns casos como os Supercampeones, ainda personagens com nomes em Inglês, para adicionar outra dimensão).