Hoje em dia, as listas de melhores do ano começam a aparecer quase tão cedo quanto as luzes de Natal. Tenho ideia de que as primeiras saem ainda em Novembro.
O que é que acontece àquelas obras publicadas no último mês do ano, como Licorice Pizza, de Paul Thomas Anderson, que se estreou em Portugal depois do Natal de 2021, ou Adoro Bolos, de Conan Osíris, que «saiu» dia 30 de Dezembro de 2017?
Na melhor das hipóteses, se forem suficientemente boas, podem entrar nos melhores da década. Se não, acabam num limbo: não pertencem a ano nenhum.
É por essas e por outras que decidi lançar as minhas listas — de cinema, música e literatura — no antepenúltimo dia do ano. Teoricamente ainda pode ser lançado algum potencial melhor do ano nos próximos dois dias. Mas já não me sinto responsável1.
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FILMES
10. Hit Man, de Richard Linklater
9. Bowling Saturne, de Patricia Mazuy
8. O Bêbado, de André Marques
7. Le procès Goldman, de Cédric Kahn
6. Onde Está o Pessoa?, de Leonor Areal
5. The Holdovers, de Alexander Payne
4. Verbrannte Erde, de Thomas Arslan
3. Ferrari, de Michael Mann
2. Passion, de Ryûsuke Hamaguchi
1. Challengers, de Luca Guadagnino
Esta é a segunda lista de melhores filmes que faço este ano. A primeira foi para o À pala de Walsh e serviu para compor a lista geral do site. Poderia ter voltado a usá-la agora, até porque adoro os cinco primeiros filmes que lá constam. A tal ponto que a ordem me parecia indiferente.
Mas regi-me por regras um pouco diferentes no Diga-se de Passagem: é elegível qualquer filme estreado nas salas de cinema portuguesas durante 2024. Por exemplo, no À pala não pude incluir o assombroso Passion — que me arrebatou na (pela) sua imperfeição — por ser de 2008.
Fica lindamente ao lado do seco Verbrannte Erde, do vrum-vrum irresistível de Ferrari e do futuro grande filme de Natal: The Holdovers. E do estridente, maximalista e berrante Challengers, que mantenho como o filme do ano.
Entre a publicação de uma lista e de outra, tive oportunidade de ver Hit Man, mais um grande filme menor de Richard Linklater (quase tão sexy quanto Challengers), que ocupa agora a última posição. Saem Un couple, de Frederick Wiseman (simpático, mas esquecível), e All of Us Strangers, de Andrew Haigh (que não estreou em sala).
Volto a não pôr Juror No. 2, de Clint Eastwood, por não ter passado em sala… A verdade é que não saberia onde o enfiar — é preciso tempo para digerir um filme assim. Se o tivesse visto há mais tempo, poderia bem ser o meu preferido do ano.
Não sei se não deveria ter incluído The Substance, de Coralie Fargeat, que é excelente nos primeiros dois terços (e um retrato cruel e contundente da velhice em geral). Dúvida que não tenho em relação a Trap, de M. Night Shyamalan (uma preguiçosa tentativa de nepotismo), ou Longlegs, de Oz Perkins (a genealogia do realizador é mais interessante do que esta espécie de remake de The Silence of the Lambs). Nem a Past Lives, que quis ser tão subtil que não lhe sobrou sangue na guelra.
Tenho imensa pena que Kuolleet lehdet/Folhas Caídas, de Aki Kaurismäki, me tenha sido estragado por um casal de idiotas que não parou de se rir na sessão a que fui. E ainda mais pena tenho de não ter gostado nem um pouco de Megalopolis, de Francis Ford Coppola.
Surgem apenas dois filmes portugueses na minha lista. Onde Está o Pessoa?, óptimo filme-ensaio que deveria ter tido muito mais público e boa-vontade da imprensa. E O Bêbado, que por pouco não é tão violento quanto Bowling Saturne. O filme de Patricia Mazuy tem a cena mais difícil de ver de 2024.
DISCOS
10. Songs of a Lost World, de The Cure
9. Patterns in Repeat, de Laura Marling
8. To All Trains, de Shellac
7. Catching Chickens EP, de Nourished by Time
6. Charm, de Clairo
5. Frog in Boiling Water, de Diiv
4. Lives Outgrown, de Beth Gibbons
3. Orquídeas, de Kali Uchis
2. Vol. 2, de Novulent
1. Realistic IX, de Belong
As regras para a lista da música são necessariamente diferentes da do cinema. Contam todos os discos editados em 2024. Ficam, por isso, de fora The Comeback Kid, de Marnie Stern, e Playing Robots Into Heaven, de James Blake, que ouvi sobretudo este ano, mas foram lançados em 2023.
Igual destino poderá ter para o ano Night Palace, de Mount Eerie, embora ameace ser tão excessivo quanto The Glow, Pt. 2, dos Microphones, o outro projecto de Phil Elverum.
E Evergreen, de Soccer Mommy, que ainda não ouvi suficientemente para formar uma opinião — tenho de ouvir um álbum no mínimo umas quatro, cinco vezes para saber o que acho dele. Ou até Sky Hundred, de Parannoul, de que nem me dei conta que tinha saído.
Mesmo My Light, My Destroyer, de Cassandra Jenkins, que ouvi mais vezes, tive dificuldade em incluir na lista. Tanta, que não o fiz. Preferi pôr os Cure, das bandas que mais ouvi em 2023 (mas não necessariamente Songs of a Lost World) e Laura Marling. Também não dei toda a atenção ao seu Patterns in Repeat, mas estou-lhe em dívida desde o magnífico Once I Was an Eagle.
De qualquer forma, a presença de Marling conjuga-se bem com as de outras cantautoras: Clairo, que só descobri este ano e em boa hora o fiz, pois Charm faz inteira justiça ao seu título; e Beth Gibbons, cujo negro e misterioso Lives Outgrown (tão próximo de Third dos Portishead) pode bem vir a ser um dos meus álbuns preferidos da década.
A carta fora do baralho é Kali Uchis (que mistura o melhor do R&B com a música latino-americana), paradoxalmente a minha artista preferida dos últimos quatro anos — Sin Miedo (del Amor y Otros Demonios), Red Moon in Venus e Orquídeas (do início de 2024) são todos magníficos.
Apesar de ter gostado de Catching Chickens EP, Nourished by Time aparece muito por culpa de Erotic Probiotic 2, o meu disco preferido do ano passado. E a inclusão de To All Trains terá algo que ver com a saudade que Steve Albini vai deixar. Nunca mais o vamos poder ver a tocar nos palcos do Primavera Sound.
Ao contrário de tanta (boa) gente, não fui arrebatado por MJ Lenderman (Manning Fireworks), a nova coqueluche dos melómanos portugueses, nem pelos Fontaines D.C. (Romance), a anunciada próxima «grande banda».
Tenho notado que todos os anos ouço um género acima de todos os outros. Em 2024, foi o shoegaze. Não admira, portanto, que os primeiros dois lugares estejam tomados por Belong e Novulent.
O duo de New Orleans foi a grande descoberta de 2024. De entre os seus três discos, Realistic IX, Common Era e October Language, é difícil escolher o melhor. O miúdo Novulent (terá já vinte anos?) cozinha as melhores canções entre os Cocteau Twins e os Deftones (ouça-se «closure» no vídeo aqui de cima).
E ainda restam os sempre «reconfortantes» Diiv, com Frog in Boiling Water.
LIVROS

10. Superforecasting: The Art and Science of Prediction, de Philip E. Tetlock e Dan Gardner
9. Copenhagen, de Michael Frayn
8. Perplexing Plots, de David Bordwell
7. Anvils, Mallets & Dynamite, de Jaime Weinman
6. Stardust, de Neil Gaiman
5. Range: Why Generalists Triumph in a Specialized World, de David Epstein
4. El Problema Final, de Arturo Pérez-Reverte
3. John, de Annie Baker
2. Poeta Chileno, de Alejandro Zambra
1. Nocturno de tenis: Rododendros #1, de Luis Torres de la Osa
À terceira lista, terceiro conjunto de regras. Na dos livros, são elegíveis todos os que li durante o ano. Se me cingisse aos publicados em 2024, esta lista seria bem pequena: manteria apenas dois dos escolhidos.
É verdade que poderia juntar Como Escrever, de Miguel Esteves Cardoso, de que gostei assim-assim. E talvez Viver Hoje como Amanhã, catálogo da retrospectiva Jorge Silva Melo editado pela Cinemateca Portuguesa, e Cinema das Palavras, colectânea de entrevistas do À pala de Walsh, nos quais participei (e portanto seria um exercício de narcisismo).
Ou até Slow Productivity, de Cal Newport, mas isso seria revelar o meu gosto por livros que cabem no que genericamente se costuma chamar (tanto rodeio) auto-ajuda. Dentro deste «género», li ainda Get Better At Anything, de Scott Young (a que voltarei na crónica da próxima semana). E Four Thousand Weeks, de Oliver Burkeman, Quit, de Annie Duke, que têm mais de um ano e entram no domínio da hetero-ajuda.
Superforecasting e Range já são parentes afastados de qualquer ajuda. Estão mais próximos da psicologia e da investigação sociológica (David Epstein, autor do segundo livro, tem um Substack em que continua a explorar o tema da anti-especialização). Ainda assim, longe do ensaio sobre caminhadas de A Philosophy of Walking, de Frédéric Gros, que não incluí nesta lista por me ter desiludido face às expectativas.
Está visto que leio bem mais em inglês do que em português (gostava de ler mais na nossa língua em 2025, farei dessa vontade uma resolução de ano novo). Mais de metade dos escolhidos são na língua de Jane Austen (para quem não sabe, a minha escritora preferida).
Li pela primeira vez Neil Gaiman (Stardust) e fiquei rendido à prosa escorreita e maravilhada própria dos melhores livros de aventuras. Reencontrei Jaime Weinman, que conhecia do excelente blogue Something Old, Nothing New, em Anvils, Mallets & Dynamite, sobre os Looney Tunes.
E voltei ao meu velho «companheiro» David Bordwell — Perplexing Plots foi o meu primeiro livro do ano (a Beatriz ofereceu-mo no Natal de 23). Quando o li, mal sabia que o autor iria morrer meses depois.
O livro que é menos sobre cinema do que sobre literatura policial deu-me vontade de aprofundar o meu conhecimento do género. Li Red Harvest, de Dashiell Hammett, que deu origem a Yojimbo, de Akira Kurosawa, e Per un pugno di dollari, de Sergio Leone; Murder on the Orient Express, de Agatha Christie; e o livrinho de bolso da Relógio d’Água das aventuras de Sherlock Holmes.
Sherlock Holmes que é mais ou menos a personagem principal de El Problema Final, de Arturo Pérez-Reverte, cuja leitura foi resultado de um feliz encontro em Madrid. Já me debrucei sobre Nocturno de tenis: Rododendros #1, de Luis Torres de la Osa, o livro que mais gostei de ler este ano, a par de Poeta Chileno, que não é de um espanhol, mas também foi escrito em castelhano.
Pau Miró é que é espanhol. Quer dizer, é catalão. Apesar de ter adorado ver Os Jogadores semi-representado no Mercado de Arroios, optei por incluir duas outras peças de teatro, as fantasmagóricas John, de Annie Baker, e Copenhagen, de Michael Frayn.
Uma mixtape à antiga
Despeço-me de 2024 com uma mixtape à antiga (ou seja, daquelas que teriam de caber numa cassete de 60 minutos). Para a compor, recorri aos melhores discos do ano, dos quais extraí as minhas canções favoritas.
Para que não ficasse demasiado pequena, incluí «Only One» de Cassandra Jenkins (cujo álbum My Light, My Destroyer esteve quase a entrar) e «I Want You To Know», de James Blake, uma batota de todo o tamanho.
Por hoje é tudo. A Beatriz Marques Morais continua de férias, mas voltamos todos para o ano. Feliz 2025.
Quer dizer, estas listas só deveriam ser feitas no decorrer do ano seguinte. Ou mesmo anos ou décadas depois. Kristin Thompson, por exemplo, anda a fazer listas dos melhores filmes dos anos 30.
Nossa, adorei o "Rivais". O livro não conhecia.
Gostei muito deste balanço cultural. Fez-me perceber que tenho visto muito pouco cinema, uma falha a colmatar. Entretanto, vou arriscar algumas das sugestões musicais e literárias. (Sobre ler mais em inglês, também leio, e o ano passado fiz um esforço consciente para ler mais em português e, importante, autores de língua portuguesa; valeu a pena!)