Livros reconfortantes
Ler Agatha Christie e John Le Carré ou como encontrar aconchego entre histórias de crime e espiões
Acho que nunca tinha comprado um livro num supermercado.
Viemos passar uns dias de férias à zona de Mira, perto de Aveiro, e tomei a decisão de usar menos o computador, sobretudo à noite. Cumpri o acordo (comigo mesmo) nas primeiras duas noites. Estava cansado do portátil e das redes sociais, a que voltei, culpa desta newsletter1.
Mas senti um vazio: o que faço agora? Essa sensação aliou-se à minha natural melancolia (um tanto russa) quando mudo de poiso (ainda que por pouco tempo). Trouxe uns livros, como é óbvio (gosto muito de passear livros quando vou de férias). O que escolhi abordava a doença mental de Nietzsche2 e estava a deprimir-me.
Naqueles dias, naquelas noites, em que nos sentimos mais sozinhos, ou mais tristes, ou mais desolados, sabe bem ter algo que nos console. Há quem se dedique a uma caixa de gelado, enrolado numa manta a ver comédias românticas (já o fiz), há quem coma chocolate (também), há quem (re)veja filmes de acção com o Tom Cruise (idem).
Desta vez, encontrei o meu consolo à entrada do Continente de Mira.
Ao lado dos jornais, está uma pequena estante com livros de bolso. A princípio, um romance de Jo Nesbø (que pensava ser uma mulher; não é) tentou-me. Não segui a moda dos policiais nórdicos, mas ver o livro ali despertou-me a curiosidade.
No entanto, o volume era mesmo volumoso — tinha mais de 600 páginas, ideal para o bolso de um gigante — e reconsiderei. Indeciso, continuei a examinar a estante, até descobrir o que procurava (sem saber que procurava): Um Crime no Expresso do Oriente, de Agatha Christie, numa edição delgada, fina.
O que é um livro reconfortante?
É um livro que nos faz sentir em casa, com uns chinelos velhos calçados, já meio deformados pelo uso, mas que se ajustam perfeitamente ao nosso pé.
Pode ser, por exemplo, um livro que conhecemos bem, de trás para a frente, mesmo que nunca o tenhamos lido3.
É o caso de Um Crime no Expresso do Oriente. Sei o enredo de cor e salteado, de tanto ter visto Murder on the Orient Express, de Sidney Lumet.
Sei perfeitamente qual é a solução do enigma posto a Hercule Poirot (curiosamente, uma variação do «mistério do quarto trancado», embora haja uma janela aberta para a neve). Lembro-me da relação de cada uma das personagens com a vítima. Conheço todas as pistas falsas.
Até era capaz de substituir o detective na explicação final do crime (há sempre uma explicação final, com todos os suspeitos presentes, nas histórias de Poirot4), desvendar os mistérios que não estão directamente ligados ao homicídio e, finalmente, apontar o dedo ao(s) verdadeiro(s) criminoso(s).
Conheço tudo tão bem, é tudo tão reconhecível, que parece que estes livros não têm estilo, brotam naturalmente assim.
Ao ler Um Crime no Expresso do Oriente, dou por mim a visualizar os actores: Ratchett, a vítima, é Richard Widmark; o secretário deste é Anthony Perkins; a instável Mrs. Hubbard é Lauren Bacall; a senhora sueca com cara de ovelha (como a descreve Agatha Christie ou o tradutor Alberto Gomes por ela) é Ingrid Bergman; e Poirot é um cabotiníssimo Albert Finney (como não gostar dele?)5.
Aconteceu-me o mesmo quando li The Talented Mr. Ripley, de Patricia Highsmith, há uns anos. Nesse caso, passou na minha cabeça a versão de Anthony Minghella com Matt Damon.
O Ripley de Alain Delon em Plein Soleil é demasiado bonito. O actor francês daria um bom Dickie Greenleaf (tenho ideia de ter lido algures que a intenção original do realizador, René Clément, era essa), tão bom ou melhor do que Jude Law (que foi excelente nesse papel).
Se relesse agora, talvez pensasse em Andrew Scott, da recente adaptação televisiva escrita e realizada por Steven Zaillian (deliciosamente obcecado por todos os pormenores).
Mas um livro reconfortante não é necessariamente um livro que conhecemos muito bem. Também pode ser de um género que nos atrai particularmente.
Por exemplo, tenho uma verdadeira predilecção por livros passados em campus universitários — Pnin, de Vladimir Nabokov, Todas las almas, de Javier Marías, a trilogia de David Lodge —, apesar de não ter assim tantas saudades dos tempos de faculdade, nem gostar especialmente de filmes com a mesma temática.
Tal como adoro whodunits e demais policiais (como é fácil constatar). E livros de espiões. Ou melhor, livros de John Le Carré (não será propriamente um género, mas entende-se).
Le Carré é o melhor calmante
Mesmo nas situações mais imprevistas, ler John Le Carré acalma-me. Não há leitura mais reconfortante.
Já tinha lido um ou dois livros do autor, ainda em português (desde que percebi que conseguia ler em inglês, nunca mais quis outra coisa): O Espião Que Saiu do Frio, quase de certeza numa edição com a capa verde, e A Casa da Rússia, em livro de bolso (constato que gosto bastante de livros de bolso).
No segundo confinamento da pandemia, em princípios de 2021, comecei a ter ataques de ansiedade (de pânico?). Achava que estava a sofrer das famosas sequelas do Covid e que tinha um problema no coração. Sentia pontadas. Por vezes, era como se algo espesso me passasse pelas veias. Pensava que ia morrer a qualquer instante.
Parei o projecto que tinha em mãos e durante uma semana só li. Dois livros de Le Carré.
O segundo foi A Perfect Spy, que muita gente considera ser dos melhores romances do escritor (e um dos mais autobiográficos) — Philip Roth afirmou que era «o melhor romance inglês do pós-Guerra». Para ajudar, o protagonista esconde-se numa cidadezinha provinciana inglesa, um cenário que me apazigua por si só.
O primeiro, Tinker Tailor Soldier Spy. Como com Um Crime no Expresso do Oriente, conhecia a história e as personagens. Gosto muito da (e vi várias vezes a) adaptação de Tomas Alfredson — o argumento de Bridget O’Connor (que morreu de cancro antes de o filme começar a ser rodado) e Peter Straughan é muito bem construído.
Um ano depois, com a Guerra da Ucrânia, a ansiedade voltou a atacar, menos potente. Desde miúdo, tenho medo da Guerra Nuclear e falava-se muito (de mais) disso nas televisões, nos comentários, em todo o lado.
Notei que ler The Honourable Schoolboy (emprestado por um amigo com quem partilho o gosto por Le Carré) me tranquilizava. Não percebo porquê — as personagens de Le Carré também sofrem de ansiedade. Vêem-se envolvidas na neblina da incompreensão, da dissimulação, estão normalmente a braços com situações de vida ou de morte. A Jerry Westerby, protagonista do livro, nem está reservado um final feliz.
O meu amigo Smiley
George Smiley é a personagem mais famosa de John Le Carré. Trabalha para os Serviços Secretos ingleses. Às vezes, é o director; das outras vezes, ou foi desacreditado ou é abertamente desvalorizado pelos superiores (Smiley não gosta de ser o ponta-de-lança que marca muitos golos, prefere ser o «número 10» que faz o último passe).
O espião cinzentão, de óculos de massa, casado com uma mulher patologicamente adúltera, é o protagonista de Tinker Tailor e de Smiley’s People. Tem ainda um papel importantíssimo em The Honourable Schoolboy (que completa a trilogia Karla, o grande inimigo de Smiley e dos Serviços Secretos ingleses) e comparece discretamente noutros romances, incluindo The Spy Who Came in From the Cold/O Espião Que Saiu do Frio.
O meu Smiley começou por ser Gary Oldman, o da adaptação de Alfredson. Para defender o filme, decidi não gostar nada do pouco que vi da série da BBC dos anos 70 e desconfiei muito de Alec Guinness, que a protagoniza. Aquele ar enfastiado, levemente zangado, não se coadunava com a minha imagem do espião inglês.
Mudei de ideias depois de ler Ghosts of my Life, de Mark Fisher.
Fisher detestava a adaptação de Alfredson e preferia mil vezes a da BBC. Deverá ter sido por isso que a vi com olhos de ver no YouTube (ainda deve andar por lá ou podem comprar o DVD, que até vem com o também óptimo Smiley’s People). Gostei, gostei bastante. Rendi-me logo na cena pré-genérico, na qual várias personagens vão entrando num gabinete e o Bill Haydon de Ian Richardson (herói-vilão do House of Cards original) vem a equilibrar uma chávena de café com leite a transbordar.
E afeiçoei-me a Alec Guinness. É um «cabeça dura», teimoso, chato. E é duro, bem mais implacável do que Oldman, que optou por interpretar Smiley com uma docilidade meio néscia. A impaciência com quem se atravessa à sua frente é palpável, está à flor da pele. Ele é sempre a pessoa mais inteligente em qualquer sala, tirando quando se encontra com o rival Karla, interpretado por um jovem Patrick Stewart (ainda nem exibia a célebre careca).
Smiley (e Le Carré) falhou-me apenas uma vez. Quando o meu pai estava doente, semanas antes de morrer, a Beatriz ofereceu-me A Murder of Quality, o segundo romance do escritor inglês com George Smiley.
Além da razão óbvia, avanço com possibilidades para o calmante Le Carré não ter funcionado. O enredo não anda à volta de espiões. É um whodunit. Smiley é chamado a uma escola privada (cenário quase tão bom quanto um campus universitário) para resolver o mistério da morte de um professor. Ou seja, há vários factores apaziguadores a funcionar ao mesmo tempo. Talvez de mais.
Ou talvez cheirasse demasiado a morte para aquele momento.
A Murder of Quality também teve direito a uma adaptação televisiva. Mas quem faz de George Smiley não é Alec Guinness. Não poderia ser ele. Aquela personagem ainda não é bem Smiley, é um proto-Smiley. Calhou a Denholm Elliot, que teve uma personagem tão bonita e triste em Saint Jack, de Peter Bogdanovich, e foi pai de Nicole Kidman em Bangkok Hilton, uma série australiana que por qualquer razão nunca esqueci. (Também é Marcus Brody, o amigo destravado de Indiana Jones.)6
Breves impressões
Nobody’s Fool, de Robert Benton
Paul Newman foi fazendo as suas despedidas nos anos 90. O actor só morreu em 2008, mas os últimos grandes papéis ficaram na última década do século passado.
A longa despedida até terá começado antes, nos anos 80. The Verdict já era uma homenagem ao corpo envelhecido do outrora belo e jovem Newman, se bem que ele só tivesse 57 anos à época.
The Colour of Money era uma passagem de testemunho a uma nova geração de actores, representada por Tom Cruise (embora este tenha decidido correr para outras aventuras, depois de tentar o cinema «sério»).
No início dos anos 90, Paul Newman ainda conseguia seduzir, apesar da diferença de idades, Melanie Griffith em Nobody’s Fool (ficou famosa a cena em que a actriz mostra os seios). A atracção entre os dois era levada na brincadeira, até porque havia Bruce Willis à mistura, ainda que ela chegasse a convidá-lo a fugir.
O filme, ainda mais branco e acolhedor do que Beautiful Girls, de Ted Demme, foi escrito e realizado por Robert Benton, que vinha recentrando o seu percurso, iniciado como argumentista do revolucionário Bonnie & Clyde.
Benton já havia ganhado o Óscar de Melhor Realizador por Kramer vs. Kramer, em 1981. Com Nobody’s Fool, quis fazer um filme mais pequeno, centrado na figura do «velho» Paul Newman.
Perdido numa cidadezinha qualquer, pai ausente que o filho renegava, dependente da caridade de uma velhota ainda mais velha do que ele. Era um loser. Que, aos poucos, se revelava o esteio de toda aquela comunidade.
Uns anos depois, Benton juntar-se-ia mais uma vez a Newman para o crepuscular Twilight. Nesse filme, Paul continuava a viver à conta dos outros, mas era detective privado e ia até às últimas consequências para descobrir a tramóia que envolvia Gene Hackman e Susan Sarandon.
Paul Newman só voltaria a ser protagonista uma outra vez, numa obra de menor relevo.
Frog in Boiling Water, dos Diiv
Conheci os Diiv no carro de um amigo há muitos anos. Nem sempre ligo ao que os outros vão a ouvir, mas aquela mistura entre shoegaze e a motorika do krautrock fez-me perguntar que banda era aquela.
Eram os Diiv (lê-se Dive). O álbum chamava-se Is the Is Are. Acompanhou-me na viagem à Escandinávia que fiz esse ano com outro amigo. Ouvi-o vezes sem conta. Porventura, ainda associo o disco ao comboio entre Malmö e Estocolmo (como costuma acontecer com música ouvida intensamente num período específico).
Fui ouvir o primeiro álbum. Através do Last.fm (sim, eu ainda uso o Last.fm), descobri que já ouvira Oshin. Aparentemente, não me deixara grande impressão, não me lembrava sequer de o ter ouvido (agora gosto quase tanto dele como de Is the Is Are).
Entretanto, vi os Diiv duas vezes ao vivo (Paredes de Coura e Primavera Sound) e ouvi o Deceiver, de 2019. O terceiro disco não foi exactamente decepcionante, mas também não entusiasmou por aí além.
Talvez se possa dizer o mesmo sobre Frog in Boiling Water, que saiu este ano, mas o prazer de reencontrar a banda supera o desgaste da fórmula.
Sabe-me bem enlevar-me com aquelas canções épicas, a roçar o pretensioso. Sabe-me bem perder-me no muro de ruído das guitarras. Sabe-me bem detectar as referências que os Diiv nunca escondem: Sonic Youth, My Bloody Valentine.
Com a idade, sabe cada vez melhor sentirmo-nos em casa (mantendo o tema desta edição da newsletter, Frog in Boiling Water é um álbum reconfortante). É por isso que nos vamos tornando menos afoitos, que vamos descobrindo menos e ficamos mais afeiçoados ao que conhecemos.
Claro que é salutar lutar contra a inércia, partir à descoberta. Mas também é bom ter um porto ao qual voltar.
Uma pitada de auto-promoção
A nossa gata chama-se Capô. É uma longa história. Que conto na curta-metragem O Travelling de Capô, agora disponível na plataforma da Filmin.
Convido-vos a vê-la.
Filmei a curta quase inteiramente na semana seguinte a ter lido A Perfect Spy e Tinker Tailor, quando comecei a sair do meu estado de ansiedade.
Talvez haja alguma influência do efeito calmante de Le Carré. Ia dizer que poderá ter auxiliado a narração, mas só a escrevi meses depois.
O Travelling de Capô é bastante artesanal, não está «bem-feito». Falta-lhe correcção de cor e o som não está trabalhado, mas parece-me, se posso dizê-lo, um filme simpático. Talvez possa reconfortar alguém.
Deixo um excerto para espicaçar a vossa curiosidade:
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão é da Beatriz Marques Morais. Espero que tenham uma boa semana. Até ao próximo domingo.
Se quiserem que eu esteja mais saudável mentalmente, divulguem-na, para eu não ter de o fazer. Alguns de vós já o fizeram, o que agradeço muitíssimo.
Aos 45 anos (quase a minha idade) enlouqueceu, (diz-se) por causa de um cavalo em Turim (que deu origem ao título do filme de Béla Tarr). Durou apenas mais onze anos, nunca recuperando a lucidez.
Não tenho a certeza absoluta de não ter lido. Quando passava férias em Portalegre, havia os livros da Agatha Christie naqueles volumes grandes da Vampiro. Quase garanto que não li este, mas... Relato, no entanto, um fenómeno estranho: quando pego no livro, parece-me sentir o cheiro a quente de Portalegre, apesar de o vento estar a uivar lá fora e a chuva caia impiedosamente enquanto escrevo isto.
Será assim em todos os whodunits da Idade de Ouro do policial? Tenho ideia que sim, mas se alguém me quiser corrigir, sinta-se à vontade.
Há aquela monstruosidade de Kenneth Branagh, baseada também neste livro, na qual até pespega uma tentativa de assassinato ao próprio Poirot, uma autêntica parvoíce. Não contente, Branagh foi destruir Death on the Nile. Guardo boas recordações da versão dos anos 70, com Peter Ustinov e Mia Farrow. Gosto desses filmes cheios de estrelas.
James Mason também «fez» de Smiley em Deadly Affair, um filme de 1967 realizado por Sidney Lumet (lá está ele outra vez), baseado em Call for the Dead, mas nem pôde usar o nome da personagem por motivos legais. Um bocado como o Nosferatu de F. W. Murnau, que é obviamente baseado em Dracula de Bram Stoker (o enredo é quase igual), mas troca os nomes das personagens.
Rapaz, esse mercado é tão louco que já vi livro até em loja de roupa...