Os amantes da literatura policial têm especial carinho pelo «locked-room mystery»1.
Traduzido à letra, quer dizer «mistério do quarto trancado». Neste sub-género, se podemos chamar-lhe assim, os detectives, são sempre os detectives, tentam desvendar um crime impossível, normalmente praticado dentro de uma divisão trancada, sem janelas, sem maneira alguma de lá entrar. E, consequentemente, sem maneira de sair.
Portanto, das duas, uma: ou o assassino ainda está lá dentro (só se fosse invisível) ou foi suicídio (depressa se prova não ser o caso).
É como aqueles mágicos que se acorrentam dentro de um baú e saem de lá sem que saibamos como, mas ao contrário. Bem, não é ao contrário: os mágicos não estão cá fora e aparecem miraculosamente acorrentados dentro de uma caixa. É mais uma mudança de perspectiva. Nos «locked-room mysteries», o investigador tem de reconstruir os passos do assassino: como conseguiu matar a vítima e sair sem ser detectado (ou sem sequer entrar na sala, o que, porventura, ainda é mais complicado)?
Curiosamente, pode dizer-se que a própria literatura policial começou com um «mistério do quarto trancado»: Os Crimes da Rua Morgue, de Edgar Allan Poe2.
Para crimes impossíveis, homens geniais
Nesse conto seminal (é mesmo seminal, não é uma vacuidade), C. August Dupin, o extraordinário detective que adivinha o pensamento de um amigo por causa de um encontrão que este levou de um vendedor de fruta quinze minutos antes, resolve o mistério da Rua Morgue lendo apenas notícias de jornal.
Os detectives deste tipo de histórias têm um génio sobre-humano. Intuem, raciocinam mais depressa do que os outros, deixando toda a gente pasmada, tanto partenaires (há sempre o amigo, o Dr. Watson que conta a história) como leitores, que assistem a tudo sem perceber nada3.
Madame L'Espanaye e a filha Camille, residentes do último andar de um prédio da Rua Morgue, são encontradas mortas, vítimas de um assassino particularmente cruel. A mais nova foi estrangulada e o corpo depois enfiado chaminé adentro4. Os restos mortais da mais velha foram lançados janela fora para o pátio das traseiras. Quando a tentam mover, a cabeça solta-se, tal são os estragos — Poe gostava de fantasmas das amadas precocemente falecidas (e de primas menores de idade; que, no fundo, eram a mesma), mas não dizia que não a um pouco de gore.
Além da brutalidade dos crimes, o que fascina os leitores dos tablóides parisienses é a maneira como foram praticados. A porta da casa das vítimas estava fechada à chave e era humanamente impossível entrar pela janela.
Para baralhar, as várias testemunhas juram ter ouvido um perigoso estrangeiro (se fossem vivos agora, seriam prováveis apoiantes da Rassemblement National). Não chegam é a um consenso: cada testemunha aponta para uma língua que desconhece. Um holandês acha que era francês, um inglês que era alemão e por aí fora.
O facto de a solução ser das coisas mais rebuscadas e estrambólicas imagináveis faz parte do jogo e aparentemente não mancha a reputação de Dupin, o grande detective (nem de Poe, o grande escritor). As soluções dos «mistérios do quarto trancado» são sempre um bocado forçadas.
Não quero estragar a surpresa, mas o livro é de 1841, portanto já tiveram tempo de o ler (e se viram a imagem lá em cima também já sabem): o culpado é um orangotango. Sim, um orangotango furibundo que subiu as paredes do prédio e entrou pela casa das senhoras. Para azar das vítimas, não foi de modas — massacrou-as num instante, enquanto grunhia uns sons incompreensíveis (a tal língua estrangeira).
O actor que fez de Sherlock Holmes e os «mistérios do quarto trancado»
Tenho tentado aprender outras línguas, sem serem o português e o inglês (para não culpar os estrangeiros de serem orangotangos). Um dos métodos que tenho experimentado é ler textos mais ou menos difíceis. Já me atirei ao alemão. «Li» Emil und die Detektive, um policial para jovens escrito entre guerras por Erich Kästner. Parece-me (ou quero acreditar) que compreendi a maior parte das coisas, mas é bem mais complicado do que o castelhano, a língua em que decidi apostar mais a sério.
Da última vez que estivemos em Madrid, voltámos à Livraria Central, perto da Plaza del Callao — uma tradição estabelecida em 2022 e repetida este ano —, mas ficámos tristes por encontrá-la do outro lado da rua, num sítio mais pequeno. Ainda assim, a selecção não é nada má.
Ao bisbilhotar os livros espanhóis, deparei-me com a figura de Basil Rathbone —o actor que interpretou Sherlock Holmes em catorze filmes — na capa azul de El Problema Final, romance de Arturo Pérez-Reverte, editado no final do ano passado, e não resisti em pegar-lhe. Mal li a contracapa, decidi que o ia levar. Na viagem de regresso a Portugal, interrompi as outras leituras e lancei-me a ele.
A premissa do livro é quase tão estapafúrdia quanto a solução de Os Crimes da Rua Morgue: um actor que interpretou Sherlock Holmes várias vezes no cinema é levado a investigar um crime (e depois outros) numa ilha isolada por uma grande tempestade.
A princípio, ainda se mostra renitente, mas lá acaba por aceitar a incumbência, devido à insistência de um escritor de romances policiais, que prefere os whodunit aristocráticos de antigamente aos hard-boiled do bas-fond que provavelmente andará a escrever. A acção passa-se nos anos 60 do século passado, quando a Golden Age do romance policial já havia passado há muito e os «mistérios do quarto trancado» já não estavam na moda.
O protagonista de El Problema Final também é um has-been, um actor que ultrapassou a meia-idade e o melhor que pode almejar é trabalhar em televisão. Não é exactamente Basil Rathbone, mas também se chama Basil e partilha com o actor diversas características: o rosto afilado e o nariz pontiagudo que o impediram de ser o galã e o obrigaram a ser o «mau da fita»; os dotes de espadachim que o levaram aos filmes de capa e espada (Rathbone lutou contra Errol Flynn em The Adventures of Robin Hood e Tyrone Power em The Mark of Zorro); a veia de bon-vivant (o Basil do livro passa o tempo a pensar em beber, deixou o álcool recentemente, e nas cigarrilhas que estão a acabar, o pesadelo de qualquer fumador); as saudades de Nigel Bruce, o actor que fazia de Dr. Watson, falecido em 1953, de ataque cardíaco; a elegância e a excelente dicção que fizeram dele o corpo ideal para encarnar Sherlock Holmes (as pessoas podem não sabê-lo, mas quando pensam no detective, pensam em Basil Rathbone, de boné de caça na cabeça e cachimbo na boca, malgrado a muita fama que o Sherlock de Benedict Cumberbatch granjeou5).
Pérez-Reverte é claramente um seguidor das aventuras do detective de Arthur Conan Doyle. As personagens passam a vida a citá-lo, a inspirar-se nas suas acções, a lembrar as suas histórias. O currículo do Basil do livro resume-se a saber diálogos de cor e a ter lido todos os livros do detective (parece adquirir as suas qualidades por osmose); e tanto o ajudante como o vilão são obcecados por Sherlock Holmes.
Mas também é um cultor do «mistério do quarto trancado», como qualquer autor do género (nem Conan Doyle escapou). Pelo menos, dois dos crimes que Basil investiga cabem perfeitamente no sub-género. A primeira vítima aparece morta numa cabana de praia, onde apenas restam as suas pegadas, apesar de não se ter suicidado. A segunda morreu num quarto literalmente trancado.
Aparentemente, Basil Rathbone, o verdadeiro, ressentia-se do sucesso de Sherlock Holmes. De ser sempre associado ao detective. O papel era o seu «quarto trancado» de que nunca conseguiu sair completamente.
Um livro, um álbum, um filme
Levels of the Game, de John McPhee
John McPhee escrevia (ainda não morreu, mas já está muito velhinho) daquelas longas reportagens na New Yorker, que duram páginas e páginas. É como se estivéssemos a ler um romance.
Quando acabamos, ficamos com a sensação de que estamos mais inteligentes do que antes — passamos a saber mais indubitavelmente (até esquecermos tudo passados umas semanas).
A maior parte das peças jornalísticas de McPhee — que também foi professor de escrita em Princeton (Draft No. 4 compila algumas das suas ideias sobre estrutura, pesquisa e organização de informação) — foram posteriormente editadas em livro.
Um deles é Levels of the Game, recorrentemente citado como um dos melhores livros sobre ténis. O livro debruça-se sobre a meia-final do U.S. Open de 1968, que decidia a presença do primeiro americano na final em muitos anos.
Ou seria Arthur Ashe ou Clark Graebner. Um negro progressista e descontraído ou um branco conservador e rígido (posto assim, não é difícil perceber de quem gostei mais). McPhee intercala momentos do jogo (a que «assistimos» do início ao fim), com episódios contemporâneos da vida de cada um e da respectiva biografia.
Para quem não conhece assim tão bem a história do ténis, o livro mantém o suspense sobre o vencedor até às últimas páginas (quem conhece, sabe a sua importância para o ténis americano). E é mesmo suspense: dei por mim a ficar tenso enquanto McPhee descrevia certos pontos.
O ser humano não tem a capacidade de não tomar partido, qualquer que seja o conflito (desporto, guerra ou acidente de automóvel). Não somos feitos para a neutralidade (só os suíços). Mesmo que nunca tenhamos ouvido falar de qualquer dos jogadores, damos por nós a torcer por um deles.
Fiquei mesmo feliz quando o meu ganhou.
Catching Chickens EP, de Nourished by Time
A música de Nourished by Time mistura R&B de princípio dos anos 90 e guitarras sonhadoras da pop hipnagógica do final da primeira década deste milénio, com toques da melhor música MOR modernista (como lhe chamava Mark Fisher), sobretudo os Blue Nile de Paul Buchanan.
A proposta é absolutamente irresistível. Se alguém tivesse criado de propósito um álbum para eu venerar, dificilmente teria feito melhor serviço do que Erotic Probiotic 2 (o meu álbum preferido do ano passado). Houve momentos em que tive de me obrigar a não ouvi-lo, para não me cansar (como às vezes acontece com as nossas obsessões).
Na altura, senti que tinha de falar sobre o álbum para lançar a boa-nova ao mundo: Nourished by Time existe! Ouçam-no! Na crítica que escrevi para o Ípsilon, vaticinei que Marcus Brown, o seu nome «verdadeiro», poderia vir a ser tão grande como The Weeknd.
Talvez não, talvez fique mais próximo do mundo e do sucesso de um Blood Orange (que, entretanto, não lança música há demasiado tempo).
Catching Chickens EP, editado já este ano, não adianta muito em relação a Erotic Probiotic 2. A espaços, parece pender mais para as guitarras do que para o R&B, mas o coro de vozes (todas de Brown) continua lá, como um certo artesanato na produção.
Entretanto, Nourished by Time assinou pela XL Recordings, um grande passo para um artista da sua dimensão.
É complicado tirar grandes conclusões. Este EP é um momento de impasse, antes do próximo álbum. Se fosse apostar, diria que, pelo menos por enquanto, vai permanecer um artista relativamente obscuro (no sentido de que ainda estará longe de ser um The Weeknd).
Posso estar enganado. Porventura, daqui a um ou dois anos estará nas bocas do mundo. E eu andarei para aí a dizer que antigamente é que ele era bom. (Não sou muito adepto desse tipo de discurso, mas nunca se sabe, às vezes somos demasiado egoístas com o que gostamos.)
Loveless, de Kathryn Bigelow e Monty Montgomery
Kathryn Bigelow é (justamente) celebrada por filmes como Point Break, Strange Days e Hurt Locker. Ela sabe filmar acção como poucos cineastas da actualidade. Mas Loveless, a sua primeira longa-metragem, de 1981, é parada, lenta, preguiçosa. A acção demora tanto a engrenar que se pode chamar inacção.
Loveless versa sobre o mundo dos bikers dos anos 50. Bigelow como que quis refazer Wild One, o filme que lançou Marlon Brando no cinema. Mas apenas a imagética, superfície: os casacos de cabedal, as correntes, as luzes de néon.
A recriação dos diners, das bombas de gasolina, dos bares de beira da estrada é mais importante do que o enredo, que se conta num instante e esquece-se noutro (eu próprio já tenho dificuldade em lembrar-me e vi o filme há menos de dois meses).
Bigelow não está minimamente preocupada com psicologia, nem com as personagens, nem com a história. Loveless não é um filme narrativo. Parece uma instalação. Os actores estão conscientes de que fazem parte da exposição. Fazem pose, respeitando as marcações dos realizadores.
A rigidez alastra-se aos diálogos, completamente artificiais, sem qualquer nuance ou subtileza. O registo é obviamente propositado, como se toda a gente estivesse mesmo num filme dos anos 50. No entanto, a interpretação de Robert Gordon, que também compôs a música do filme, é como giz a partir-se num quadro (leia-se: não é simpática).
Mas o Brando de Bigelow é Willem Dafoe, ainda muito jovem. Dafoe é daqueles actores que usa o corpo todo, como se fosse um bailarino. O facto de a coreografia ser estática — à excepção das viagens de mota pelas estradas do interior americano — não impede o actor de exercer o seu fascínio. É quase impossível desviar os olhos dele.
Loveless não é só de Bigelow. O filme também é assinado pelo produtor Monty Montgomery (porventura mais conhecido por ter interpretado o aterrador Cowboy de Mulholland Dr.6). É complicado discernir o que é responsabilidade de cada um, para mais quando toda a gente se esquece dele ao falar do filme.
Por hoje é tudo. Boa semana.
Este texto vem a propósito desta edição de The Honest Broker, a newsletter do crítico de jazz Ted Gioia. Além de apaixonado pelos «mistérios do quarto trancado», Gioia escreve muito bem sobre quase tudo. Fiquei com muita vontade de ler John Dickson Carr, que desconhecia.
Claro que há quem diga que existem exemplos anteriores de uma e outro. Há sempre quem diga que há exemplos anteriores. É o mesmo tipo de gente que afirma que o primeiro álbum é o melhor ou que, quando professo o meu amor por Jeff Buckley, me responde que prefere o pai.
Quando era mais novo, no início da adolescência, punha-me a tentar descobrir os culpados dos romances policiais. Deixei-me disso quando uma prima minha gozou comigo por ter parado de ler e ter ficado com ar pensativo (mais provavelmente de parvo) a tentar desvendar o mistério que tinha nas mãos. Agora, leio este tipo de histórias pelo prazer da intriga e nunca me deixo envolver.
Como a Chabala dos Mão Morta, essa canção mais noir do que whodunit, apesar do refrão «Quem matou?».
Há outros. O candidato mais forte é Jeremy Brett, que interpretou o detective na série de televisão inglesa que durou uns dez anos. Percebo quem se tenha afeiçoado. David Suchet será sempre o meu Poirot.
Você usa notas de rodapé! Isso deveria ser proibido.