Música middle of the road. Não é carne, nem é peixe. Não tem os ângulos pontiagudos da música experimental, nem a ferocidade do rock. Costumava ouvir-se no rádio do carro, em viagens longas pelas estradas nacionais ou no meio do trânsito congestionado da cidade. Estava para ali, pano de fundo do dia-a-dia dos anos 80, princípios dos 90, finais dos 70. Pardo papel de parede para as vidas sentimentais dos ouvintes da RFM e da Rádio Paris-Lisboa. Um saxofone de uma canção dos Simply Red acoli, o acetinado da produção dos álbuns de Sade1 acolá.
Também não é bem música de elevador. Não é suposto que passe completamente despercebida, embora não deva incomodar muito: nem da maneira mais óbvia, sendo demasiado ruidosa, impedindo a conversa de fluir; nem da mais perturbadora, sendo demasiado bela para permitir palavras de circunstância. A música MOR era a banda-sonora ideal de jantares caseiros, preparados por uma intelectual a caminho dos quarenta, que ia ao Quarteto e à Cornucópia, e aos sábados comprava o Expresso. Quando estava sozinha, talvez bebesse um copo de vinho a ouvir aqueles discos, ainda em vinil, ou talvez já tivesse uma aparelhagem de CDs. O som era melhor e nem precisava de se levantar do sofá para mudar o lado do disco. Em pouco tempo, descobriria a world music, que, além de cumprir a função da música MOR, trazia a sua própria caução, uma respeitabilidade que se transmitia ao ouvinte. Ou, se não tivesse abandonado totalmente os urbano-depressivos da juventude, talvez preferisse uns Dead Can Dance.
Na verdade, esta mulher dos anos 80, intelectual, que prepara um jantar para os amigos igualmente intelectuais, não existe além de um anúncio publicitário imaginário que criei agora mesmo e não tem qualquer semelhança com a realidade. Uma intelectual desta época não ouviria MOR, Prefab Sprout ou Blue Nile. Mais depressa ouviria Cure ou Smiths, ou Joy Division, ou, se fosse mais alegre, os ABC ou os Human League. (De qualquer maneira, que raio de anúncio teria um grupo de amigos intelectuais a ouvir Blue Nile? A existir, seria um anúncio do século XXI e não das últimas décadas do século XX. Mas estaria a vender o quê? Um modo de vida? A nostalgia em si?)
Os Blue Nile e os Prefab Sprout embora não sejam propriamente música «masculina», cheia de testosterona, agradam mais aos homens. Literatos, bem pensantes. Que pensam num amor não correspondido enquanto ouvem «Bonny» ou «When Love Breaks Down». É música que poderia muito bem sair de uma banca da Feira do Livro com dois jovens a conversar sobre música e literatura, como ouvi um dia em meados dos anos 90. Música de intelectuais que ouvidos menos apurados jamais reconheceriam como música de intelectuais. Esses estariam mais à espera de algo vanguardista, excêntrico, estranho, malsão, e passar-lhes-ia despercebido como estas bandas incorporam uma certa excentricidade sem a exibirem.
Peguemos nos Prefab Sprout. Poderiam ser confundidos com uma banda anódina dos anos 80, mais uma entre dúzias de grupos, sem nada que a distinguisse especialmente, menos preocupados com a criatividade do que com fitos puramente comerciais. Algures no YouTube, mora um programa em que Siouxsie2 (que parece sempre demasiado snob para perceber o que quer que seja, louvado seja «Spellbound») fala do vídeo do «Cars and Girls» — ou do «Hey Manhattan» ou mesmo o do «King of Rock ’n’ Roll» (portanto seria de uma canção do From Langley Park to Memphis, álbum de maior sucesso da banda de Paddy McAloon) — com nojo, enquanto George Michael (mais melómano) a observa com uma ponta de condescendência3. Como Green Gartside (saiu-me Garth Greenside antes de corrigir, nunca acerto neste nome) dos Scritti Politti, Paddy McAloon também começou no pós-punk. Quer dizer, enquanto Greenside vinha dos squats e do marxismo militante, McAloon vinha de uma família católica de Newcastle e do amor pelo Brill Building e pelos grandes compositores do início do século XX e cantava obliquamente sobre temas improváveis (xadrez e Bobby Fisher) em canções desnecessariamente complicadas.
Pensando bem, a melhor pop desenha-se na intersecção (da tensão?) entre o meio da cultura popular e as suas franjas. Nas obras-primas dos Prefab Sprout, Steve McQueen e Jordan: the Comeback, essa tensão está à mostra, mais saliente no que nos outros álbuns. Mesmo com as suas canções trauteáveis, são esquisitos, diferentes (jamais passariam por álbuns comerciais nos dias de hoje). A banda inglesa está sempre a criar um atrito de estranheza na polidez pop — até porque a produção de Thomas Dolby pule demasiado som, no limite da normalidade, do suportável4.
Já os GNR, provavelmente a melhor banda pop portuguesa, surgiram das experiências de Vítor Rua e Alexandre Soares, quiseram ser os Talking Heads portugueses, estar na vanguarda musical. E foram mais interessantes logo após escaparem à influência de Rua, ainda com Soares, quando não estavam ainda absolutamente firmados no estrelato à portuguesa e Rui Reininho ainda não era uma espécie de anedota sem necessidade de punchline. Em Defeitos Especiais e Os Homens Não Se Querem Bonitos, havia um desejo de conquistar tudo e todos, havia um desejo de sucesso. De fazer canções orelhudas que passassem na rádio, que culminou anos depois nos milhares que foram vê-los ao antigo Estádio de Alvalade (o palco dos grandes concertos da altura).
Claro que estou a fazer batota, ninguém classifica os Prefab Sprout, Blue Nile e Scritti Politti (e muito menos os GNR) como MOR, preferem chamar-lhes pop sofisticada5 e coisas do género. Ninguém a não ser Mark Fisher, que desencanta a noção de MOR modernista para descrever o óptimo So This is Goodbye dos Junior Boys (o melhor álbum do século XXI?) e por arrastamento estas bandas que os influenciaram, sobretudo os Prefab Sprout, cuja ascendência na música dos canadianos é mais do que óbvia.
O último álbum dos Junior Boys, Waiting Game, é muito curioso. Em primeiro lugar, porque parece um esboço de um álbum dos Junior Boys que estes não tiveram tempo de acabar. Em segundo, porque é uma tentativa de uma banda de electrónica de refazer a música da banda de Paddy McAloon («Fidget» e «Samba on Sama» podiam muito bem ser canções dos ingleses).
A influência não se nota necessariamente na música em si. Talvez até mais na sensação que provoca, entre o estranho e o reconhecível. Aquela superfície MOR, meio soporífera, a polidez da produção, as melodias orelhudas, as letras sinceras, à flor da pele. E o sorriso matreiro por trás de tudo.
A cantora, não o escritor. Não é que alguém fosse confundir, mas nunca se sabe, até se pode imaginar um mundo em que Sade Adu cantasse as obscenidades do Divino Marquês, ou, ainda mais engraçado, o dito marquês a atirar-se a uma balada soul enquanto sodomizava a amante: traçando assim uma linhagem da chamada «música de ir ao cu».
Só há pouco tempo é que soube que se lê Susie.
Não encontro o dito vídeo, apenas um em que George Michael fala dos Joy Division e parece um gajo porreiro, bem mais porreiro do que Morrissey, que também lá está (o que, diga-se de passagem, não deve ser propriamente difícil).
Uma produção quase tão abstracta como a de Calum Malcolm para os Blue Nile, que já são só traços de som, linhas onde as palavras de Paul Buchanan — cigarros, comboios, ontem à noite, luzes de néon — se penduram.
Em inglês, sophisti-pop, um termo que não soa mesmo nada bem.