Tenho dificuldade em conceber que o mesmo realizador de Unbreakable — um filme seríssimo, pomposo e ponderoso, sobre heróis de banda desenhada1 (sempre gostei do filme também por causa dessa dissonância) — faça algo tão pouco característico quanto Trap.
Não é preciso perceber muito de cinema para intuir que o primeiro foi realizado com dedicação e cuidado extremos (embora a grandiloquência possa irritar muita gente). Já o novo filme parece um produto da inteligência artificial, como se Shyamalan tivesse apenas escrito o prompt no ChatGPT e deixado o programa correr.
O estilo excessivo, a roçar o barroco, foi substituído por um naturalismo desalmado, uma mise-en-scène by the numbers (como se também ela tivesse sido programada pela I.A.)2 — campo/contra-campo para os diálogos; grande plano/plano de reacção para as cenas de acção. Se era para isto, não se entende a escolha de Sayombhu Mukdeeprom, director de fotografia em alta — trabalha com Apichatpong Weerasethakul e Luca Guadagnino (e Miguel Gomes, já agora).
Mukdeeprom é capaz do mais puro artifício (Challengers e Suspiria) e de uma espécie de naturalismo «luxuriante» (como na obra de Apichatpong), mas também consegue seguir um naturalismo mais «natural» (Call Me By Your Name). No entanto, Shyamalan prefere direccioná-lo para um não-estilo perfeitamente anónimo, que qualquer novato pouco talentoso poderia fazer.
Essa é uma das maiores oportunidades desperdiçadas em Trap. A outra é a premissa.
Para começar, é preciso dizer que a ideia de Trap é absolutamente estapafúrdia3: a polícia de uma cidade monta um cerco a um concerto — imagine-se as horas extraordinárias a pagar àquela gente toda — para apanhar apenas um homem (que matou talvez meia-dúzia), pondo em risco milhares de pessoas, sobretudo adolescentes4. Para compor o ramalhete, esta ideia brilhante vem da cabeça de uma psicóloga/profiler5 absolutamente genial (assim nos é vendida a criatura, até porque tem sotaque inglês, marca das pessoas inteligentes) que tem poder sobre toda a gente, incluindo uma estrela pop6.
Mas, ultrapassada a estupidez da coisa, a premissa tem um potencial enorme: um homem – que por acaso é um assassino em série, mas também é o protagonista com o qual nos identificamos (até porque vem acompanhado pela filha adolescente que o adora) — tem de arranjar maneira de, dê lá por onde der, encontrar saída de um recinto fechado, onde toda a gente anda atarefada à sua procura.
Dava para fazer, no mínimo, um belíssimo filme de série B, como escreve Vasco Câmara no Ípsilon. O que falha, então?
Em primeiro lugar, Shyamalan não descansa enquanto não se livra daquele dispositivo e sai cá para fora, tornando o filme «mais normal», roubando-o daquilo que lhe ia dando uma certa graça.
Em segundo, porque parece não saber (ou não ter paciência para) trabalhar o dispositivo como deve ser. Veja-se a maneira preguiçosa como dá a informação de que o protagonista é um assassino em série (este vai à casa de banho verificar no telemóvel se está tudo bem com a vítima que tem aprisionada algures) ou a de que o concerto é uma armadilha para o apanhar (o protagonista só tem de perguntar ao primeiro comic relief que lhe aparece à frente). O trailer faz melhor serviço que o próprio filme.
E o que é que Shyamalan faz com o «recinto fechado»? A comparação dificilmente seria favorável, mas pense-se no que Brian De Palma atingiu com Snake Eyes, essa pequena obra-prima7.
A grande diferença entre os dois filmes estará no ponto de vista. Snake Eyes é um acumular de pontos de vista, um caleidoscópio cada vez mais maravilhoso de olhares: o de Deus (com quem diz de De Palma) na exuberante sequência inicial; o do polícia seboso de Nicolas Cage, que começa a reparar em coisas que não tinha visto antes; o das personagens secundárias, que revivem episódios passados (o ponto de vista literal do pugilista através de uma cortina); o do «mau da fita», que revela os bastidores da conspiração.
Qual é o ponto de vista de Trap? Não é o do protagonista, nem o da filha deste, nem o da profiler genial, nem o do deus-realizador. Parece simplesmente não existir. Será que alguém pensou nisso sequer?
Provavelmente, o maior problema de Trap é Shyamalan estar mais preocupado em documentar a filha a cantar8 do que em filmar um thriller. Passe o nepotismo, louve-se o pai extremoso: se pode ajudar a filha, percebe-se que o faça. Mas não vale fingir que o olhar esgazeado de Josh Hartnett perfaz uma grande interpretação ou que uma premissa com potencial, mas muito mal trabalhada, anuncia um qualquer «regresso à forma» do realizador.
Shyamalan sempre teve tanto detractores quanto simpatizantes insuspeitos (João Bénard da Costa tecia-lhe loas a cada novo filme), mas antes havia algo para gostar ou não gostar. Agora só se encontra o desmazelo, o descuido, um não-querer-saber (que porventura até são menos indigestos para os que dantes não gostavam nada do seu cinema).
Trap é a explicação para se ter deixado de fazer pequenas obras-primas como Snake Eyes. Não vale a pena uma pessoa chatear-se. Para quem é, bacalhau basta. Uma realização anónima vale o mesmo que uma mise-en-scène exuberante e hiper-planeada. Um argumento bem orquestrado, tanto como um conjunto de ideias acéfalas lançadas ao ar. Shyamalan aprendeu a lição e presume-se que não voltará atrás. É pena.
É um pouco como se alguém erigisse uma catedral majestosa para celebrar um guaxinim.
Eu, que não tenho seguido a carreira de Shyamalan atentamente, já tinha notado essa queda estilística: é a diferença entre Split e Glass.
Quase tão estúpida como aquela sequência de Dark Knight Rises, outro filme muito pateta, em que toda a força policial (toda, é mesmo toda, só escapam os enfermos e as chefias) se enfia nos túneis de Gotham à procura de um único malfeitor.
Não gosto de encontrar plot holes e falhas de lógica nos filmes. Parece-me um desporto fútil, arma de arremesso para quem não tem melhores argumentos. Mas às vezes não consigo suspender a descrença. Pode ser uma questão de fé. Se acreditar que o filme me vai levar a bom porto, estou mais disposto a tolerar todas as parvoíces e incredulidades. O contrário também é verdade, obviamente.
Interpretada por Hayley Mills, que conheço somente do verso «You’re still in love with Hayley Mills» de «Goodbye Lucille #1» dos Prefab Sprout, uma das minhas canções preferidas.
O filme parece querer dar a entender qualquer coisa sobre ela, mantendo o suspense sobre a sua identidade, não lhe mostrando imediatamente a cara, mas vai-se a ver e não é nada — como se alguém começasse a contar uma anedota, mas se esquecesse de dizer a piada.
De um tempo relativamente recente no qual se faziam obras-primas sem se dar muito por isso.
Ouve-se uma dezena de canções de Saleka Shyamalan. Que não são boas nem más, antes pelo contrário; semelhantes às que outras candidatas a estrelas pop andam para aí a cantar. Não fosse ser filha de M. Night, Saleka jamais se distinguiria das demais.