O ensaio é o melhor amigo do ténis (e vice-versa)
Que o digam David Foster Wallace, Serge Daney e Luis Torres de la Osa
Nocturno de tenis: Rododendros #1, de Luis Torres de la Osa, leva-me a perguntar porque é que, de entre todos os desportos, o ténis se dá tão bem com o ensaio, no cinema como nos livros.
E ainda: Playing Robots Into Heaven, o regresso de James Blake ao dubstep, e Una pura formalità, o estranho confronto entre Gérard Depardieu e Roman Polanski.
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O desporto não costuma ser bem servido pelo cinema.
Foi a conclusão a que o Luís Miguel Oliveira e eu chegámos numa parte da nossa conversa que não coube na entrevista publicada.
O futebol é uma miséria — é preciso fugir o mais possível à ficção para encontrar um filme decente (Zidane, un portrait du 21e siècle). No basquetebol, costuma ser melhor quando vai aos bastidores (como Air, de Ben Affleck). Corridas de carros, ainda é como o outro, até tem alguns sucessos (Rush, Ford vs. Ferrari, e Ferrari). Golfe é uma pessegada a atirar para o espiritual (The Legend of Bagger Vance). O mesmo para as corridas de cavalos (Seabiscuit).
O único desporto que ganha com o cinema é o baseball (evito propositadamente o aportuguesamento, é inestético), sobretudo se contar com o Kevin Costner (guardo boas memórias de Bull Durham, no qual Costner contracena com Tim Robbins e Susan Sarandon).
Segundo o Luís, é por não conhecermos bem as regras. Se não, detectaríamos incorrecções semelhantes às que nos irritam nas representações de modalidades que seguimos. É possível, mas quero acreditar que há algo de inerentemente cinematográfico no baseball. Não sei o quê: não percebi nada do único jogo que vi ao vivo.
Estou a excluir snooker1, cartas e quejandos, que costumam dar bons filmes, mas não são desportos.
O ténis (não) é excepção
No cinema, os tenistas ou são assassinos (Match Point) ou candidatos a tal (Strangers on a Train e Dial M for Murder — Hitchcock devia desconfiar mesmo de jogadores de ténis).
Quanto à representação do desporto em si, existe um filme qualquer com a Kirsten Dunst que não vale nada (aposto, sem ter visto). Ainda bem que Luca Guadagnino lançou o sensualíssimo Challengers ou o cenário seria desolador.
Estou a fazer mais ou menos batota. Um dos meus filmes preferidos dos últimos anos é sobre ténis: L’empire de la perfection, de Julien Faraut.
Não é bem um documentário, embora «documente» a passagem de John McEnroe por Roland Garros (sobretudo a duríssima final contra Ivan Lendl em 1984), através de imagens recolhidas por Gil de Kermadec, um ex-jogador que enveredou pelos filmes de instrução tenística, cheios de ralentis e imagens de computador primitivas.
E, por muito que confunda a narração na primeira pessoa de Mathieu Amalric com a voz de Faraut (um jogo interessante, mas pouco explorado), também não é ficção.
As citações de Jean-Luc Godard («o desporto não mente», ao contrário do cinema, que o faz vinte e quatro fotogramas por segundo) e do crítico e cinéfilo Serge Daney2, um grande apaixonado pela modalidade, não enganam. L’empire de la perfection é um ensaio, um ensaio fílmico. Feito de divagações, suposições, tangentes e desvios.
Aparentemente, a troca de bolas entre dois tenistas, além de ser extremamente gratificante visualmente, é propícia a devaneios intelectuais. Deve ser de se mexer a cabeça de um lado para o outro, atrás do movimento da bola. Põe as ideias a fluir.
Um encontro feliz
Quando regressámos de Berlim de comboio, pernoitámos em San Sebastián (ou Donostia, em basco), uma cidade lindíssima — junta mar, rio e montanha (e boa comida) em pouquíssimos quilómetros quadrados — que tem algumas contas a ajustar comigo (de outro rosário).
Nas nossas deambulações, demos com uma livraria na Plaza Bilbao chamada Donosti3. Pus-me à procura de qualquer coisa em inglês, acho que uma das sequelas de The Talented Mr. Ripley, de Patricia Highsmith, que fiquei com vontade de ler depois de ter visto a série de Steven Zaillian (que supostamente vai adaptar todos os livros da personagem), mas não encontrei o que queria.
Outro livro chamou-me a atenção: Nocturno de tenis: Rododendros #1, de Luis Torres de la Osa.
A capa não é famosa e o ténis não é necessariamente o meu assunto preferido (apesar de ter gostado bastante de Levels of the Game, de John McPhee, por exemplo). O castelhano, por sua vez, não é propriamente o meu forte. O título também não é grande coisa. E nunca tinha ouvido falar do autor.
Mas, lá está, o livro «chamou-me». Estava ali, em destaque numa das prateleiras da livraria — tinha acabado de sair, em maio de 2024 —, a pedir-me para que o folheasse. Um provocador, enfim. Em seu favor, tinha o facto de ser um ensaio.
Os tenistas frustrados dão nos melhores escritores
David Foster Wallace participou em vários torneios de ténis na juventude, fez parte da «máquina» que produz novas gerações de tenistas profissionais. Desistiu, por sentir que não era suficientemente bom (poucos são). E porque a vida, as tentações, a escrita, a depressão, os vícios se começaram a intrometer.
No entanto, os ensaios que escreveu sobre a modalidade continuam a ser considerados os melhores. Cinco deles — «Derivative Sport in Tornado Alley», «How Tracy Austin Broke My Heart», «Tennis Player Michael Joyce’s Artistry as a Paradigm of Certain Stuff About Choice», «The String Theory» e «Federer Both Flesh and Not» — foram reunidos em String Theory, que teve edição portuguesa na Bazarov, com tradução de Bruno Vieira Amaral, esgotado em todo o lado (menos na Térmita aparentemente).
Luis Torres de la Osa também jogou ténis, até aos quinze anos. Se tivesse continuado, talvez pudesse ter chegado a profissional. Provavelmente, não. Esbarrou nos mesmos obstáculos de Foster Wallace.
Cansou-se daquela vida, não quis continuar a sacrificar-se, sabendo que jamais seria um grande jogador, embora tenha ganhado a Juan Carlos Ferrero, futuro número um do ATP, num torneio juvenil, em que acabou eliminado nos quartos-de-final (às tantas, pergunta-se se será um quarto-finalista da vida, embora eu possa responder que um «vencedor» como Ferrero nunca conseguiria escrever assim tão bem).
Apesar de o seu Nocturno de tenis ser um longo ensaio sobre a modalidade, não pretende rivalizar com os de Foster Wallace. O próprio de la Osa, confesso admirador do norte-americano (por muito que se ofenda com as imprecisões factuais de um ou outro artigo), seria o primeiro a afirmar que tal é um objectivo fútil.
«Se produce un tintineo muy agradable cuando un autor describe, con exactitud, una sensación o un pensamiento que inconscientemente creías tuyos, y que habían permanecido inexpresados (...). El placer provocado por dicho tintineo es tanto más poderoso cuanto más específico es el hecho — filia, fobia, pasión o secreto — compartido.»
Escreve a propósito de Foster Wallace, descrevendo exactamente o que eu sinto quando o leio a ele, Luis Torres de la Osa.
E, no entanto, as nossas experiências não poderiam ser mais diferentes.
Bater bolas
Gosto moderadamente de ténis. De ver, isto é. O meu pai, que jogava nos torneios da empresa (ganhou umas taças a pares), tentou ensinar-me a jogar uma vez. Ainda bati umas bolas. Nem sei se passaram para o outro lado da rede. Apenas que o episódio não teve qualquer continuidade.
Os dedos dos pés e das mãos devem chegar para contar os jogos que vi do início ao fim. E a maior parte deles terá sido ao vivo, no Estoril, onde vi jogar Thomas Muster (dois meses antes de conquistar Roland Garros frente a Michael Chang) e Roger Federer, que na altura já era (ou ainda era) «o melhor tenista de todos os tempos». Nem me lembro contra quem.
Na televisão, prefiro apanhar os encontros quando estão num ponto mais avançado, mais determinante. Não necessariamente no quinto set (se estivermos a falar de homens), para aí no terceiro, quando já há vantagem para um dos tenistas. Depois, é escolher se torço pelo que está a ganhar ou pelo que está a perder.
O meu pai é que seguia todos os torneios, os importantes pelo menos. Era ele que me ia falando dos novos jogadores em ascensão, foi ele que me falou pela primeira vez de um jogador sérvio a quem ele apelidava de «lampião», por ter vestido uma camisola do Benfica durante o Estoril Open.
Embora Novak Djokovic pareça uma pessoa um tanto detestável, apoiei-o quase sempre, sobretudo contra Rafael Nadal, um jogador com quem nunca fui à bola, sem que consiga explicar muito bem porquê.
Agora já não conheço tenistas. Federer e Nadal reformaram-se. Djokovic será o próximo. Onde é que já vão os Kuertens (vi Guga ganhar o Masters em Lisboa, no ano 2000), os Agassis, os Kafelnikovs, as Steffi Grafs, as Mary Pierces, por quem também costumava torcer?
Pontos de contacto
Luis Torres de la Osa é de 1979. Eu sou de 1980. Sermos da mesma geração será a única coisa que temos em comum.
Tudo bem, gostamos de Foster Wallace, de Nabokov, de aforismos, de metáforas, de misturar uns assuntos com outros, desporto, literatura, paixões platónicas, jogos de computador, memórias imperfeitas, curiosidades. Assim como milhões de outras pessoas.
Até concordamos que o «tradutês» é insuportável e que os sábados de manhã são a melhor altura da semana. Achamos interessante (e assustador) que Marc Rosset tenha escapado à morte por ter perdido um avião e que o campeão mexicano Rafael Osuna tenha morrido por terem esperado por ele. Já o xadrez, que ele tanto aprecia, e os nocturnos de Chopin, que dão nome ao livro, dizem-me muito pouco.
Então, porque é que de la Osa «fala» assim comigo? Porque é que parece que encontrei um irmão perdido naquela livraria de San Sebastián?
Gostava de lhe perguntar se já viu L’empire de la perfection. Ele, que se queixa que o ténis é mal representado nas artes, provavelmente iria gostar muito. Se calhar, até viu, o livro foi escrito antes de o filme circular por aí.
Provavelmente gostou de Challengers tanto quanto eu. Finalmente, uma longa-metragem sobre ténis, com ténis por todo o lado, em que a troca de bolas é como um engate num bar ou um diálogo do cinema clássico norte-americano dos anos 40, como Bogart e Bacall a falar de jockeys e cavalos.
Será que ele sabe porque é que o ténis se adequa tanto ao ensaio?
Breves impressões
Sobre filmes, discos, séries, livros. Podem ser recentes ou antigos. Desde que me despertem a curiosidade e o interesse.
Playing Robots Into Heaven, de James Blake
Estou já a fazer as contas aos álbuns de 2024 (as listas de «melhores do ano» devem sair no dia 29) e pus-me a pensar onde posicionaria Playing Robots Into Heaven, de James Blake na lista dos discos.
Descobri que em lado nenhum. O álbum saiu em setembro do ano passado.
No entanto, o disco merece umas palavrinhas:
Com Blake, posso fazer aquele exercício de «o primeiro álbum é que era» (que costuma irritar-me muito). Até posso fazer melhor: «nos primeiros EP é que ele era bom». The Bells Sketch, CMYK, Klavierwerke. Gostava bastante do dubstep que ele praticava na altura, por volta de 2010. Era uma versão ligeiramente mais pop dos dois primeiros (e únicos) álbuns de Burial (provavelmente os discos mais influentes da primeira década deste milénio).
Mas o primeiro álbum de James Blake (o auto-intitulado James Blake) decepcionou-me. Não é que seja mau, mas deixava para trás o dubstep, aproveitando-se mais da voz celestial e das suas capacidades como «músico». Muito piano e pouca batida.
Ainda o ouvi umas vezes, mas acabei por me ir esquecendo. Os álbuns seguintes de Blake passaram-me praticamente despercebidos.
Por qualquer razão, talvez por causa deste vídeo de Timbah.On.Toast (dos canais mais interessantes do YouTube), fui ouvir Playing Robots Into Heaven. E lá estava ele: o James Blake dos primeiros EP.
«I Want You To Know», a melhor canção (que rouba letra e melodia a um instante de «Beautiful», de Pharrell e Snoop Dogg), volta ao território de Burial. «Fire The Editor», quase tão boa, é assombrada pelo espírito do jovem Blake (e tem um solo de órgão que faz lembrar «November Rain» dos Guns N’ Roses).
O resto do álbum está cheio daqueles acabamentos imperfeitos, dir-se-ia brutalistas, que me deliciam. Mesmo a balada «If You Can Hear Me» (dedicada ao pai) tem um loop de piano mal feitão, no qual se ouve perfeitamente o corte no sample.
Se tivesse sido lançado este ano, Playing Robots Into Heaven entraria com certeza nas minhas contas.
Una pura formalità, de Giuseppe Tornatore
Pensava que Giuseppe Tornatore era muito mais velho. O realizador italiano tinha apenas trinta e quatro anos quando Nuovo Cinema Paradiso ganhou o Óscar de Melhor Filme e se tornou num dos preferidos de muito boa gente (tenho de confessar que eu mesmo gostei muito, apesar de ser um «prazer culpado» para qualquer cinéfilo que se preze).
Portanto, não teria quarenta anos ainda quando rodou Una pura formalità, em 1994. Este junta Gérard Depardieu e Roman Polanski num daqueles confrontos entre grandes actores que às vezes são suficientes para sustentar um filme inteiro.
Polanski é o polícia, Depardieu o suspeito. O cenário é uma esquadra de província. A situação e as personagens trazem à lembrança o esquecido Garde à Vue de Claude Miller (assim como o remake Under Suspicion, que vi primeiro) e o combate entre Lino Ventura vs. Michel Serrault (e Morgan Freeman vs. Gene Hackman).
A premissa promete tanto que até fingimos que não vemos os excessos estilísticos de Tornatore (que estava na mó de cima depois do Óscar) a adornar e a acentuar tudo e mais alguma coisa. Ou a chuva que cai incessantemente, símbolo intrusivo e insistente. Ou até as dobragens próprias dos euro-pudins4 da época.
A presença de Polanski é fascinante — o polaco pode não ser reconhecido como actor, quanto mais como «grande actor», mas não se safa nada mal frente ao peso-pesado do cinema francês. Aliás, ver o seu nome ao lado do de Depardieu foi a razão que me fez querer ver o filme.
Só que a premissa (e a promessa) de Una pura formalità é tão boa quanto o final meio new age é mau. Digo mais: Tornatore esbanja o «bom» para se concentrar naquilo que o filme tem de menos interessante (e até um tanto ridículo). É caso para dizer que atirou fora o bebé e guardou a água do banho.
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão é da Beatriz Marques Morais. Tenham uma boa semana. Até ao próximo domingo.
Ponho-me a pensar: que tal um remake de The Hustler com um jogador de matraquilhos nas mesas tortas e maltratadas dos bares do Bairro Alto?
Daney escreveu amiúde sobre transmissões televisivas de ténis (os replays, o fora-de-campo) nas páginas do Libération. Encontrei dois exemplos — este e este — em inglês, que não é a língua de Daney, nem a minha, mas foi o que se pôde arranjar. As suas reflexões sobre novas formas de filmar a modalidade parecem antecipar de Kermadec e L’empire de la perfection.
Como a Beatriz e eu gostamos de livrarias, entrámos em várias durante a viagem. Vi três edições diferentes de Knife, de Salman Rushdie: Le Couteau, Cuchillo e Knife. Os alemães estragaram-me a sequência e não intitularam a sua versão Messer. Uma pena.
Chamava-se euro-pudim àquele tipo de produção europeia com actores e técnicos de várias proveniências que resultava amiúde numa salganhada sem tino.
raquete. rs