No final de cada mês, escrevo sobre obras que me fizeram companhia ultimamente. Podem ser recentes ou antigas. Desde que me tenham despertado a curiosidade e o interesse.
As Escolhas do Mês de Abril recaem sobre um filme de que nunca tinha ouvido falar, um disco de um músico que me acompanha há anos e um livro de um autor a que só agora dei o devido valor.
E ainda há uma playlist colectiva com canções que eu e os leitores do Diga-se de Passagem escolhemos.
The Big Clock, de John Farrow
Nos dias de hoje, John Farrow deve ser mais conhecido por se ter casado com Maureen O’Sullivan, a Jane do Tarzan de Johnny Weissmuller, e por ser o pai de Mia, que atingiu fama maior do que a dos progenitores. Mesmo nos dias de ontem não devia ser muito diferente — nunca ninguém acusou John Farrow de ser um autor, nem de primeira, nem de segunda, nem de terceira.
Pode ser ignorância (pode mesmo ser, não é força de expressão), mas até há pouco tempo não sabia quem era e nunca tinha visto um filme seu, apesar de ter assinado inúmeras longas-metragens, desde os anos finais do cinema mudo até à década de 50.
The Big Clock, realizado em 1948, é mais uma demonstração das limitações da Teoria de Autor. Como é que um realizador praticamente desconhecido faz um filme destes? Que não será propriamente uma obra-prima, mas ombreia com dúzias de «filmes menores» de autores consagrados.
Sigo o canal de YouTube Moviewise com alguma relutância (a opinião sobre Chantal Akerman1 é estapafúrdia), mas adoro ouvir o autor falar sobre mise-en-scène, na acepção mais «coreográfica» do termo — da disposição dos corpos no espaço, no caso do cinema, frente à câmara.
Os anglo-saxónicos vão buscar conceitos análogos, como blocking e staging, ao teatro, mas não há nada mais cinematográfico do que deixar os actores representar com o corpo todo, com liberdade de movimentos, numa dança constante com a câmara de filmar, não os limitando ao grande plano estático do campo/contra-campo — uma ditadura que resulta de décadas de televisão2.
Foi através deste vídeo do Moviewise que descobri The Big Clock. Farrow, de facto, revela mestria no plano longo com movimentos de câmara e de actores. Não o plano-sequência ostensivo à Alfonso Cuarón ou à Alejandro González Iñárritu, mas o oner à Steven Spielberg ou à Robert Zemeckis. Ou seja, os planos longos do cinema clássico, pelos quais David Bordwell pugnava.
Estou-me a esquecer de falar do filme. A premissa é óptima: Ray Milland é o «falso culpado»3 que anda atrás de si mesmo, enquanto se esquiva do magnata da imprensa Charles Laughton — entre o Kane de Orson Welles, o J. J. Hunsecker de Burt Lancaster e o Daniel Clamp de Gremlins 2 (ou seja, o Trump de Donald).
O enredo seria reaproveitado e bem em No Way Out, um thriller dos anos 80 com Kevin Costner, Sean Young e Gene Hackman (este, numa espécie de ensaio para Absolute Power, de Clint Eastwood). E até num realizador como Roger Donaldson se encontra rigor e inventividade na planificação, sobretudo se comparado com os congéneres da actualidade.
Aspirant, de Lo Five
Sei que ouvi falar pela primeira vez de Lo Five através do blissblog de Simon Reynolds (sim, esse, o do texto mais bonito que já li na Internet). Andava em busca de recomendações musicais e Reynolds apontou-me para a obra de Neil Grant.
Já não consigo lembrar-me se a entrada era esta ou esta, nem tenho a certeza de qual foi o primeiro álbum que ouvi. Terá sido Geography of the Abyss ou TONIC? Ou terá sido outro, que já não encontro. Apenas garanto que o que ouvi mais vezes foi The Art of Living, com as suas citações dos Pensamentos de Marco Aurélio4, reiterando que a vida é finita (já sabemos, Marco, não precisas de te estares a repetir).
Faz sentido que não consiga precisar — a música de Lo Five é tão difusa, tão evanescente, que nem a memória a pode agarrar. É ideal para quando se quer dormir uma sesta depois do almoço — põe o cérebro a dançar, a mente a viajar, naqueles momentos preciosos entre a vigília e o sono, em que temos consciência dos sonhos nascentes.
Ao contrário do que o nome artístico indica, a obra de Grant não se enquadra bem no lo-fi (pelo menos, não é aquele lo-fi anódino «vendido» no Spotify e no YouTube). Ou melhor, só é baixa-fidelidade na mesma medida que a electrónica artesanal dos Boards of Canada também o é.
Com as antenas constantemente a tentar sintonizar um passado meio idílico, meio aterrador, no meio de batidas sincopadas e arrítmicas, Lo Five está mais perto do território dos escoceses e dos álbuns mais pacíficos de Aphex Twin. E da «hauntologia»5 dos músicos da Ghost Box: Belbury Poly, The Focus Group, Mordant Music e The Advisory Circle.
Ainda não conheço Aspirant (que saiu no final do ano passado) tão profundamente como os álbuns anteriores de Lo Five — ainda não dormi nenhuma sesta a ouvi-lo —, mas continua na mesma linha hipnagógica, de onirismo de onda média (até há uma interferência entre a primeira e a segunda canção).
De qualquer maneira, esta entrada serve sobretudo para apresentar a discografia de Neil Grant, sobre a qual ainda não tinha tido oportunidade de escrever, apesar de me fazer companhia há uns bons anos.
Crónica de Uma Morte Anunciada, de Gabriel García Márquez
Tinha má opinião de Gabriel García Márquez, motivada, percebo agora, por um profundo desconhecimento.
Por mais exemplos que o contrariassem, mantinha o preconceito que ligava toda a literatura sul-americana ao Realismo Mágico. Pior, à versão mais delicodoce e xaroposa do género.
Há muitos anos, na adolescência, li Como agua para chocolate, de Laura Esquivel. Segundo me lembro, gostei bastante do livro. Do que não gostei mesmo nada foi da adaptação cinematográfica de Alfonso Arau. Mas, por qualquer razão, que não consigo explicar completamente, passei a associar todo o Realismo Mágico a essa experiência. E, por conseguinte, a rejeitá-lo.
O nome García Márquez despertava-me por si só uma reacção negativa. Imaginava a sua escrita enjoativa, cheia de alegorias, acontecimentos fabulosos e figuras de estilo pegajosas.
Por saber que José Cardoso Pires gostava muito de Mario Vargas Llosa, sempre preferi o escritor peruano a todos os outros da América do Sul (tirando os brasileiros, é claro), apesar de só ter lido A Festa do Chibo, numa edição de bolso comprada para matar o tempo antes de uma sessão de Yasujirō Ozu no Nimas há muitos anos. Se calhar, devia ter escrito sobre esse livro, que achei muito bom, ou sobre outro do recém falecido Vargas Llosa.
Na verdade, só equacionei a compra de Crónica de Uma Morte Anunciada — no mesmo supermercado onde adquiri Um Crime no Expresso do Oriente, de Agatha Christie — por causa do nome do tradutor: Fernando Assis Pacheco. (E por o livro ser curtinho: tem pouco mais de cem páginas.)
Como é óbvio, por tudo o que escrevi antes, não estava à espera de uma obra-prima. Nem de perceber que Cardoso Pires está mais próximo de García Márquez do que de Vargas Llosa — Crónica de Uma Morte Anunciada é uma espécie de O Delfim, com um narrador armado em detective (ou repórter), a tentar reconstruir um crime, para acabar por esbarrar no buraco negro da dúvida (será que Santiago desvirtuou mesmo a nova rejeitada?) e dos comportamentos inexplicáveis.
Entre analepses e prolepses (tomando como ponto de partida o dia da «morte anunciada»), García Márquez joga com a inevitabilidade do homicídio, ocorrido há décadas, e a sensação de que é possível evitá-lo — a única personagem inconsciente da «sentença» é a vítima. Até os assassinos parecem querer impedi-lo, mas o destino (ou o passado) é demasiado forte para ser alterado.
Mais: quem tenta impedi-lo é quem se certifica definitivamente de que acontece realmente.
Uma playlist colectiva
Como não vou respeitar os preceitos da Mixtape à antiga — tem mais de sessenta minutos e não há grande coerência musical—, mudo temporariamente o nome à rubrica.
De resto, esta playlist composta de canções que gostaríamos que tocassem no nosso (respectivo) funeral conta com vários contributos, de leitores do Diga-se de Passagem e autores de outros Substacks: yasmin vereen, Leopoldo Primeiro, João Luís Silva, Nuno Babo, Rita S., João Salazar Braga, António Tadeia, Narrativista Suave, Pagomes, Hugo Santos, Rute Sousa, Sérgio Ferro Dionísio e da Beatriz.
Eu também participo — as minhas escolhas são as canções que abrem e fecham a compilação.
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão é da Beatriz Marques Morais.
No domingo que vem, vou escrever sobre o projecto a que me tenho dedicado nos últimos três anos: uma longa-metragem, que, se tudo correr bem, vou filmar neste Verão.
Tenham uma boa semana. Até ao próximo Diga-se de Passagem.
Eu próprio ainda não fui, mas quem vive em Lisboa ou pode cá passar nos próximos meses não deve perder a exposição Chantal Akerman. Travelling, sobre a falecida realizadora belga, no Centro Cultural de Belém.
A découpage (a planificação de cada cena) e a montagem no streaming, então, são dignas da inteligência artificial mais rasteira.
Milland nunca é completamente inocente, mesmo que neste filme lhe tenham tirado a infidelidade que está no livro em que se baseia. Deve ser o rasto que ficou de Dial M for Murder, o filme mais revisitável de Alfred Hitchcock.
O Imperador Romano, não o ex-central do Sporting, nem o antigo guarda-redes do Belenenses. A este, ao contrário de Júlio César, que defendeu a baliza do Benfica, nunca ninguém chamou de Imperador (mas também nunca levou sete golos da Alemanha).
Popularizado por Simon Reynolds e Mark Fisher — hauntology é um conceito difícil de explicar. Poder-se-ia traduzir por «fantasmologia», que não lhe faria justiça (perder-se-ia a ideia de ontologia), mas sempre é melhor do que a solução encontrada por Vasco Gato para Fantasmas da Minha Vida editado pela VS: «hantologia».