Desde há duas edições do Diga-se de Passagem que se fala de carros. Começou com os automóveis futuristas de Tucker: The Man and His Dream, de Francis Ford Coppola, continuou com os carros de corrida de Luís Miguel Oliveira1, e, em princípio, acaba hoje.
O mais curioso é que nem sequer tenho carta de condução. E quando ando na rua sinto-me em permanente conflito com a maioria dos automobilistas. Faz-me confusão a agressividade de quem conduz em Portugal. Lembro-me de como em Berlim nem existem passadeiras e, no entanto, há uma saudável e natural convivência entre carros, peões e bicicletas. O problema, claramente, não é a falta de regras. Deve haver poucos países com tantos radares, tantos limites de velocidade, tantos sinais de STOP.2
Domingueiros
Mas não era sobre a minha revolta contra os automóveis de que queria falar. Antes, do meu paradoxal fascínio por estes.
Para qualquer pessoa que tenha nascido até ao final dos anos 80, o som dos carros de Fórmula 1 fazia parte da banda sonora dos almoços de domingo em família. Era tão reconfortante quanto a voz de Adriano Cerqueira, que comentava os Grandes Prémios na RTP, até passarem a ser transmitidos em exclusivo na Sport TV, no início deste século.
Ainda hoje, nomes como Gerhard Berger trazem-me memórias simpáticas, embora não me recorde muito bem de quem era Gerhard Berger — ao investigar como se escreve o nome (que, de resto, é fabuloso), percebi que seria o segundo piloto de Ayrton Senna já não sei em que altura. Talvez esteja redondamente enganado. Prefiro ficar na ignorância. Imagino-me a criar uma banda chamada Gerhard Berger como os londrinos Rosa Mota, que se calhar não fazem ideia de quem é a maratonista portuguesa e que ganhou a Medalha de Ouro nos Jogos Olímpicos de Seul em 1988.
Ao domingo, o carro tinha outra função: levar a família a passear pelas redondezas, talvez a ir almoçar fora (perdendo assim o som dos carros a acelerar no televisor de casa). A viagem nunca era até muito longe. Servia sobretudo para os automóveis se mostrarem, depois de ficarem uma semana inteira estacionados debaixo de uma capa cinzenta.
Uma imagem tão corriqueira, que, entretanto, desapareceu. Hoje em dia, os carros são demasiado banais para esse tipo de cuidados e atenções.
A música dos carros
Em «Comfy in Nautica», a primeira canção de Person Pitch, o álbum que Panda Bear lançou em 2007, ouvem-se carros de F1 a passar lá ao fundo. Não funcionam como mero sample, o músico usa-os como se fossem um saxofone ou outro instrumento de sopro. Quando o vi a apresentar o álbum ao vivo, no antigo B.Leza na Rua da Boavista em Lisboa, o som ainda era mais pronunciado. Preenchia a sala, batia nas paredes, era quase como se estivéssemos num autódromo (com más condições acústicas).
Mais ou menos na mesma altura, M.I.A. editou Kala, o seu segundo álbum (tão bom quanto o primeiro Arular). Curiosamente, também é na primeira canção, «Bamboo Banga», que se ouvem carros de F1 a acelerar à nossa volta. Para compor o ramalhete das referências automobilísticas, a cantora cita expressamente «Roadrunner» dos Modern Lovers de Jonathan Richman.3
«Leader of the Pack» das Shangri-Las não tem carros de corrida, mas o barulho das motas é quase como uma guitarra cheia de feedback de algumas décadas à frente.
A canção fala de um motociclista que vem do lado errado do caminho-de-ferro e é líder de um gang de motoqueiros. Apaixona-se por uma rapariga de boas famílias. E quando ela acaba a relação, ele fica tão consternado, que morre, vítima de um acidente (será que foi acidente?). Uma história de amor com um final trágico.
Por sua vez, o protagonista de «There is a Light That Never Goes Out» dos Smiths deseja morrer ao lado da pessoa amada. Para tal, quer que ela se espete contra um autocarro de dois andares (não deve ser ele que vai a conduzir; nessa altura Morrissey não tinha carta). Não é que o diga explicitamente. Na verdade, diz que só lhe apetece sair e ver pessoas, mas fica a incerteza se a luz que nunca se apaga não será aquela que se vê na hora da morte.
Colisão fatal
Na semana passada, perguntava ao Luís Miguel se parte do fascínio da F1 não estaria relacionado com uma certa fetichização do acidente, do desmembramento, da morte. Embora ressalvasse a necessidade de segurança, ele respondeu-me que a possibilidade de um condutor morrer dava «um pathos incrível» às corridas.
E a possibilidade de ver alguém morrer em directo na televisão exercia um fascínio enorme no espectador, acrescento eu.
Tive essa experiência com a morte de Senna, um piloto de quem nem gostava muito (o meu pai incutiu-me a preferência por Prost). Penso que estava a fazer qualquer coisa no computador, talvez a jogar algum jogo, enquanto o Grande Prémio de San Marino estava a dar na televisão. Talvez tenha visto o acidente a acontecer, já não tenho a certeza. Mas lembro-me de seguir as notícias todas durante a tarde, até à confirmação oficial da morte do piloto. Na segunda-feira, não se falava de outra coisa na escola.
Impressionou-me tanto quanto a morte de Miklós Fehér, uns anos depois, no final de um jogo chatíssimo, de domingo à noite (a altura da semana na qual o Benfica perde mais pontos), debaixo de uma chuva intensa. Um golo de Fernando Aguiar a dar a vitória ao Benfica em Guimarães quase a acabar o jogo e de repente Fehér cai no relvado, depois de levar um cartão amarelo por perder tempo. Inanimado. Morto, depressa percebem os colegas.
Perturbou-me a morte aparecer num momento tão trivial.
Imagino o que seria ter um Fehér por semana, ou tão-só existir essa possibilidade. Como demonstra o documentário 1: Life On the Limit, narrado por Michael Fassbender, é basicamente a história da F1 nos anos 60 e 704. Fim-de-semana sim, fim-de-semana não, podia morrer qualquer um dos pilotos em prova, enquanto a família almoçava em casa, descansada. A deles e a nossa. Dá a ideia de que as normas de segurança foram impostas para evitar indigestões.
O acidente de viação enquanto obra-de-arte
É literalmente (e literariamente) impossível falar da fetichização da morte em carros sem referir Crash, de J. G. Ballard.
Nunca li o livro. Apenas os dois primeiros capítulos, no outro dia. Tinha ideia de que conseguiria chegar ao fim antes de escrever esta edição do Diga-se de Passagem, mas não me apeteceu ler mais.
Deu para perceber que, ao contrário da adaptação de David Cronenberg, que revi agora, Elizabeth Taylor é invocada, ou melhor existe mesmo como personagem. Vaughan — o mentor e antagonista e guru do protagonista James Ballard (que tem o nome do escritor) — quer morrer numa colisão contra ela (sabe-se logo nas primeiras páginas que falha o alvo).
Ballard interessa-se tanto pela fama como pela auto-satisfação (auto de carro). Mortes de celebridades em acidentes de viação era um duplo prazer. Não é por acaso que Vaughan se diverte a fazer reenactments das mortes de James Dean, Jayne Mansfield, John Fitzgerald Kennedy. Se o livro tivesse sido escrito vinte e cinco anos depois, teria decerto pegado no acidente que vitimou a Princesa Diana num túnel em Paris5.
O filme é tão desagradável quanto o livro. As personagens de Crash são inumanas, no sentido que estão mais perto da máquina do que do ser humano, verdadeiros ciborgues viciados em sexo e auto-destruição («maybe the next one»). Existenz, o filme seguinte de Cronenberg, apesar de assexuado por comparação, leva ainda mais longe a ideia da «desumanização». Ninguém sabe sequer se é real.
Crash não é a primeira adaptação do romance de Ballard. Antes houve «Warm Leatherette» de The Normal, que é como quem diz Daniel Miller, o dono da Mute Records, que lançou os Depeche Mode e discos de Nick Cave and the Bad Seeds.
Quem não estiver com paciência para ouvir a canção, basta imaginar James Murphy a viajar no tempo e a fazer a melhor canção dos LCD Soundsystem no início dos anos 80. Ah, e a gostar muito, mas mesmo muito, de J. G. Ballard. Mesmo sem ter lido o romance até ao fim, aposto que a letra de «Warm Leatherette» é o melhor resumo de Crash. Houvesse canções destas para todos os livros que gostaríamos de ter lido.
A magnífica Grace Jones, uma estátua gélida e inescrutável, ao nível de uma Nico6, também tem uma versão da canção. Fê-la menos maquinal, mais dançável, com a preciosa ajuda do baixo e da bateria de Sly & Robbie. Mas não chega aos calcanhares da genial «Pull Up the Bumper». Expoente máximo do auto-erotismo, também mistura automóveis e alusões sexuais. Tantas que a cantora teve de negar que a canção era sobre sexo anal.
Mas «Warm Leatherette» também não é a primeira adaptação de Crash. Essa foi realizada antes mesmo de o romance ser escrito.
The Atrocity Exhibition, o livro anterior de J. G. Ballard7, tinha um capítulo intitulado «Crash!». Harley Cokeliss (outro nome extraordinário8) realizou, em 1971, uma curta-metragem baseada nas ideias que lá encontrou.
Chamou o próprio Ballard e pô-lo a falar de carros e acidentes, entre imagens de crash test dummies, auto-estradas e o fantasma de uma vítima de um acidente de viação (interpretada por Gabrielle Drake). O escritor deve ter gostado da experiência (tinha razões para isso: o filme, produzido pela BBC, é bastante bom). Dois anos depois publicou Crash.
Ainda há outra adaptação do livro: Nightmare Angel, de Zoe Beloff e Susan Emerling. Foi realizada em 1986 sem que os direitos da obra de Ballard tivessem sido garantidos. O enredo é quase igual ao do livro (quer dizer, ao do filme de Cronenberg, que é o que eu conheço). Só mudam os nomes das personagens. Vaughan chama-se William de Freis e o protagonista, Jack Weston.
Poderia continuar com a relação entre carros, sexo e violência. Poderia ir parar a Christine, de Stephen King e John Carpenter, e ao criminoso que possui Plymouth Fury (possui no sentido sobrenatural). Ou a Auto Focus, de Paul Schrader, sobre um actor de sitcom obcecado com sexo que apareceu assassinado. Mas aí já estaria a fazer batota: o auto refere-se ao foco da câmara de vídeo e não tem nada que ver com carros. De qualquer maneira, o texto já vai longo. É melhor ficar por aqui.
Breves impressões
The Last Run, de Richard Fleischer
A primeira curiosidade de The Last Run é ter sido filmado parcialmente em Portugal. Depois da morte do filho e do consequente divórcio da mulher, George C. Scott (sobre)vive em Albufeira, rodeado de actores que não sabem falar português.
Em Chicago, de onde é originário, Harry Garmes (a personagem de Scott) conduzia carros para criminosos. Como demonstra nas estreitas estradas de montanha portuguesas, acelera como ninguém, preparado para qualquer fuga.
Faz lembrar a personagem de Ryan O’Neal em The Driver e a de Ryan Gosling em Drive. (Também faz lembrar Terence Stamp em The Hit, o melhor filme de Stephen Frears, mas esse escondia-se na Andaluzia.) A diferença é estar mais velho e cansado. Quer dizer, o actor tinha quarenta e quatro anos (a minha idade), mas parece ter mais, bem mais.
Continuamos no tema dos carros, está visto (acreditem, não foi de propósito).
Como o próprio título indica, Scott vai fazer uma última viagem. Não porque precise (como costuma acontecer neste género de filmes), mas para abafar a dor da existência. A tarefa é levar um foragido da prisão (Tony Musante, o protagonista do óptimo L'uccello dalle piume di cristallo, de Dario Argento) e a sua namorada a atravessar a fronteira entre Espanha e França.
O filme esteve para ser realizado por John Huston, mas este e Scott desentenderam-se por causa do argumento do escocês Alan Sharp e acabou por ser feito por Richard Fleischer, um realizador subvalorizadíssimo (Compulsion, 10 Rillington Place, The New Centurions; tenho de ficar por aqui, a lista continua). A fotografia é de Sven Nykvist, conhecido por colaborar com Ingmar Bergman, que se estreava em filmes norte-americanos.
Outra curiosidade de The Last Run é ter juntado Colleen Dewhurst, que faz de prostituta de coração de ouro, e Trish Van Devere, que interpreta a namorada do fugitivo. Num ano, George C. Scott divorciar-se-ia da primeira e casar-se-ia com a segunda.
El último sueño, de Pedro Almodóvar
Antes de começar a escrever, baralhei o nome deste livro de Pedro Almodóvar com a autobiografia de outro realizador espanhol: Luis Buñuel. Essa chamava-se Mi último suspiro, este El último sueño.
A confusão é natural, ambos os títulos falam de morte. O de Buñuel enleva-se na própria — Don Luis escreve a história da vida como derradeiro gesto criativo. O de Almodóvar fala do último sono da mãe, que adormeceu para sempre em 1999.
Almodóvar tinha uma relação com a mãe tão próxima quanto a de Roland Barthes com a sua. O francês escreveu A Câmara Clara como maneira de fazer o luto dela — e não durou muito mais, vítima de um atropelamento nas ruas de Paris.
Apesar de ser um especialista do melodrama, Almodóvar não é muito dado à tragédia, pelo que não seguiu o destino de Barthes. Depois da morte da mãe, continuou a fazer filmes e a viver. E a escrever.
El último sueño compila textos de origem variada. Alguns mais antigos — a personagem Patty Diphusa faz uma aparição —, outros mais recentes. Uns quantos são contos mais ou menos corriqueiros. Não sendo extraordinários — Almodóvar é melhor cineasta do que escritor —, lêem-se bem.
Mas os mais interessantes são os que misturam autobiografia e ficção pura e dura até ser impossível destrinçá-las.
Como o conto que deu origem a La mala educación (o próprio filme deixa muitas dúvidas sobre o que pode ser real ou não). Ou o que reconta o processo criativo por trás de Mujeres al borde de un ataque de nervios como tentativa mal sucedida de agradar ao namorado, que queria protagonizar La voix humaine, de Jean Cocteau (peça que viria a ser adaptada pelo realizador espanhol em 2020, com Tilda Swinton).
A capa da edição espanhola (que a portuguesa mantém) é deliciosa, como podem ver. Ninguém confundiria aquele jarro de flores com óculos escuros pelo «busto» de mais ninguém. Só poderia ser Almodóvar.
Uma mixtape à antiga
Para matar de vez o assunto das últimas semanas, a mixtape deste mês também é sobre carros. Não foi difícil lembrar-me de umas quantas canções sobre o tema e desencantar outras tantas. Aparentemente, os músicos são tão «fanáticos dos popós» quanto os outros mortais, se não mesmo mais, até porque têm dinheiro para comprar os que quiserem.
Incluo a banda sonora que Howard Shore compôs para Crash. A música do genérico — um jogo de guitarras que mais parece Glenn Branca — é malsã, hipnótica, encantatória.
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão é da Beatriz Marques Morais. Espero que tenham uma boa semana. Até ao próximo domingo.
Penitencio-me por não ter falado de Manoel de Oliveira com o Luís. Antes de ganhar reconhecimento como realizador por esse mundo fora, o nosso cineasta-piloto venceu várias corridas de carros.
Acho que sei a resposta: há demasiados carros a circular, sobretudo dentro das cidades. É capaz de ser uma opinião controversa.
No mesmo álbum, M.I.A. usa outro som fora do comum. No refrão de «Paper Planes», ouvem-se uma caixa registadora e tiros. Dez anos antes, Tricky usara o gatilho de pistola na asfixiante «Strugglin’» de Maxinquaye. Continuando pelos sons «concretos» (e pelos objectos letais) em canções pop, lembro a motossera de «Speedway», a melhor canção do excelente Vauxhall and I de Morrissey.
O documentário é uma hagiografia de Bernie Ecclestone e Max Mosley, mas não deixa de mostrar a loucura que permeava toda a operação antes de estes tomarem conta dela.
A propósito de Diana e de Ballard, Rogério Casanova descobriu na autobiografia do Príncipe Harry um plágio ao escritor inglês.
Que haveria de morrer não de um acidente de viação, mas ao cair de uma bicicleta numas férias em Ibiza. Já agora, corrigindo o que escrevi lá atrás, se tivesse uma banda chamar-lhe-ia Christa Päffgen, o nome de baptismo de Nico.
E título de uma canção de Joy Division.
E uma personagem que não lhe fica atrás. Cokeliss ou Cokliss era um cineasta norte-americano que viveu em Inglaterra. Realizou algumas cenas de The Empire Strikes Back e fez Black Moon Rising, com Tommy Lee Jones, Linda Hamilton e argumento de John Carpenter.