Esta é a segunda parte da crónica sobre a minha relação com Lisboa enquanto habitante dos subúrbios da Linha de Sintra (portanto, a oeste da capital).
Se a primeira parte se focava na infância e início da adolescência, esta esbarra nas dificuldades de adaptação à vida universitária, quando passei a ser considerado «jovem adulto» (não é um período fácil, pelo menos para mim não foi).
Até começar a andar pela cidade sem os meus pais, «a minha Lisboa» não era muito grande.
Era a Baixa, a Avenida da Liberdade, a Cervejaria Trindade (onde comia omeletes de queijo), depois o Campo Grande, o Saldanha, São Sebastião (onde morava um amigo), pouco mais.
Já andava de metro sozinho, quando o metro só tinha duas ou três linhas (antes da Expo 98), já voltava para Massamá de comboio, quando o comboio não estava sempre a abarrotar, mas os meus percursos contavam-se pelos dedos da mão de Shéu1.
À procura do cinema
Quando comecei a aventurar-me pelas ruas da cidade era um pouco como jogar Civilization no computador — a cada metro desbravado, o mapa ia sendo preenchido; o resto, o desconhecido, continuava obscuro. (Será que as versões mais recentes do jogo mantêm este aspecto?)
Já tinha ido ao King Triplex com colegas da escola para ver a versão em inglês de The Lion King (éramos demasiado crescidos para ver a portuguesa). Regressaria não muito depois com os meus pais para ver Chungking Express, de Wong Kar-wai, muito falado nos semanários que lia religiosamente nas viagens de comboio para casa — o Já e O Independente (que eram diametralmente opostos politicamente, embora a primeira edição do Já tenha vindo dentro d’O Independente).
Depois disso, devo ter lá ido uma série de vezes com eles. Como também íamos ao Quarteto, ao Londres, ao Monumental, todos desaparecidos entretanto — infelizmente, sobram dois ou três cinemas de rua em Lisboa.
Lembro-me muito bem da primeira vez que fui ao King sozinho, até porque quase não o encontrava (estava habituado a ir de carro). Já não consigo garantir, mas devo ter perguntado a alguém onde ficava. Se não o tivesse feito, ainda hoje estaria às voltas no Areeiro, completamente perdido.
Creio que terá sido em 1996, no Verão de 96 (seria Junho?), apesar de ter uma lembrança de chuva miudinha. Nessa tarde, perdi o episódio de Homicide: Life on the Street, que adorava2 e ainda hoje associo às férias de Verão (se calhar só foi transmitida no ano seguinte, mas a memória é mesmo assim).
Ia (e fui) ver o Land and Freedom, de Ken Loach. Nem vou muito à bola com os filmes do inglês, demasiado didácticos (mais até do que panfletários)3, mas desse até guardo memórias boas — gosto do actor principal, Ian Hart, e a história do proletário britânico na Guerra Civil espanhola interessou-me.
Pensando bem, Terra e Liberdade (como se chamou em Portugal) deve ter sido o primeiro filme que fui ver sozinho ao cinema. A memória mistura-se com a ida ao mesmo cinema para ver Un divan à New York, encontro inicial com o cinema de Chantal Akerman (não fazia ideia de quem era e passei a subestimá-la durante demasiado tempo).
Mas isso foi no ano seguinte e já não me perdi. A minha relação com as três salas do King foi longa e intensa e só terminaria quando fecharam em 20134.
À deriva
Não se pode dizer que a minha entrada na Universidade tenha sido um sucesso. Aliás, pode dizer-se exactamente o contrário.
Por razões que ainda tenho dificuldade em compreender, fui parar a um curso de Economia.
Ora, quando lia um jornal, saltava invariavelmente as páginas sobre economia. Gostava era de ler crítica de cinema e de música, um pouco de política, uma qualquer notícia sobre Lisboa. O que explicava bem os dois anos no ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão), nos quais fiz apenas duas cadeiras.
Apesar de ter percebido logo que não era para mim, não quis dizer nada aos meus pais (outro mistério) nem fiz qualquer tentativa para mudar de curso. Em vez disso, fingia que ia às aulas. E fazia tempo até ser hora de voltar para casa.
Como nunca gostei de autocarros (devido à minha aversão pelo trânsito)5, andava a pé por toda a parte.
Pela Rua de São Bento, onde vi uma pequena multidão à porta de uma casa (mais tarde, percebi que pertencia a Amália Rodrigues, falecida horas antes). Pela Calçada do Combro, ainda sem turistas a subirem-na e a descerem-na. Pela Poiais de São Bento — devo ter passado imensas vezes à porta do Incógnito, que viria a ser «a minha discoteca». Pela Dom Carlos I, com a qual nunca simpatizei.
Pela Barata Salgueiro da antiga Cinemateca Portuguesa de que ainda gosto mais do que da actual, que fica exactamente no mesmo sítio6. Pela Avenida de Roma, à procura do livro que queria ler, na Livraria Barata. Pelo Rossio e pelos Restauradores e às lojas da Valentim de Carvalho e da Virgin, nas quais ficava horas (não estou a exagerar: eram literalmente horas) a passar os dedos por cada CD, sem nunca pedir para os ouvir (na altura, ainda era mais tímido do que sou hoje). Pela Estados Unidos da América, para ir ao Quarteto (cheguei a ver dois filmes na mesma tarde, porque o primeiro, do Mike Figgis, não me deixara satisfeito). Pela Avenida de Roma, onde até há pouco tempo ficava a Pastelaria Sílvia — por vezes almoçava lá antes das sessões do King; todos os empregados eram, sem excepção, mal encarados.
Foi assim que o mapa de Civilization da cidade de Lisboa se foi preenchendo quase totalmente7.
Por essas alturas, andava a ler os situacionistas (culpa de Lipstick Traces e de Greil Marcus) e o conceito de «deriva» deliciava-me, apesar de nunca o ter compreendido muito bem. Mas sempre que me enfiava por uma rua desconhecida, sem GPS nem Google Maps (pura ficção científica nesses tempos), sentia orgulho de estar a seguir os preceitos da Internacional Situacionista.
Seja como for, agora vejo que essas deambulações, às vezes sem destino, eram a melhor metáfora para o meu estado de espírito na altura — perfeitamente à deriva.
Uma pitada de auto-promoção
Por falar em cinemas que já não existem, deixo-vos um pequeno vídeo que fiz há mais de dez anos (para celebrar o primeiro aniversário do À pala de Walsh) sobre as salas que me tinham desaparecido até então: o Quarteto, que deitaram abaixo para fazer um ginásio; o Ávila, actual local de culto de uma igreja protestante (quando filmei, era algo mais esotérico); e o A.C. Santos da Avenida da Igreja, que durou pouquíssimo tempo.
Na altura, o King ainda existia. Fecharia poucos meses depois.
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A Beatriz Marques Morais tinha muito trabalho acumulado e não pôde fazer a revisão.
No domingo que vem, vou escrever sobre o meu filme de Páscoa preferido. Não digo qual é, para irem adivinhando.
Tenham uma boa semana. Até ao próximo Diga-se de Passagem.
Que só tem quatro dedos numa mão, enquanto Álvaro Magalhães, seu companheiro de equipa no Benfica, tinha seis. A piada era que juntos tinham vinte dedos.
A série é baseada num livro-reportagem homónimo de David Simon, futuro criador de The Wire. Nesse sentido, Homicide é percursora daquela que, como toda a gente sabe, é a melhor série de televisão jamais feita.
Por exemplo, arrependi-me muitíssimo de ir ver o The Wind That Shakes the Barley, que até ganhou a Palma d’Ouro em Cannes.
Ainda hoje estão para ali esquecidas, à espera não se sabe de quê. Falou-se, há não muito tempo, da possibilidade de reabrirem. Infelizmente, parece que o projecto não foi avante.
Gosto de os ver passar ao anoitecer, sobretudo quando não vão muito cheios. É como se estivesse a ver um filme em CinemaScope.
Continuo a afirmá-lo, apesar de ter conhecido a antiga Cinemateca durante dois anos e esta já existir há bem mais de vinte (e até já trabalhei lá na livraria).
Há zonas que continuo a conhecer muito mal (ou muito pouco), como a Ajuda e Alcântara.
Eu tenho impressão que já fui contra ti nalgum concerto
curiosamente, vivi uns anos universitários semelhantes em lisboa aí na av. roma/estados unidos da américa - completemante à deriva também.
passei inúmeras vezes por esse cinema sem nunca me aperceber muito bem o que era por estar ao abandono, grande parte das vezes para ir ao cinema city no campo pequeno.
uma memória que tenho de infância é ir ao cinema londres com a minha avó e com o meu primo. lembro-me perfeitamente do meu primo fugir da sala a ver um scooby doo e de ter ficado a ver o filme sozinho. foi a primeira de muitas.
ao ler o teu texto, a ideia de um mundo mais salas de cinema e com "fog of war" parece-me bem mais atraente.