Foi preciso sair de Lisboa — estou a 200 quilómetros de distância, relativamente perto de Febres, a terra natal de Carlos de Oliveira, escritor que conheço de menos — para escrever sobre a relação com a minha cidade.
Pela primeira vez no Diga-se de Passagem vou dividir uma crónica em duas partes. A primeira sai hoje. A segunda, para a semana. É uma experiência. Sinto que às vezes escrevo de mais. O que me custa a mim e, presumo, custará a quem me lê.
Assim, a coisa fica mais digerível. (Se não, digam-me.)

Durante a primeira metade da minha vida vivi nos subúrbios de Lisboa. Literalmente, a oeste da capital1.
Primeiro em Queluz, no mesmo Monte Abraão onde Ruy Belo morreu, mais ou menos com a idade que tenho hoje. Depois, em Massamá, onde Cândida Branca Flor pôs termo à vida com pouco mais de cinquenta anos.
Os meus pais decidiram ir para aquela zona para ficarem perto dos meus avós maternos, que moravam na ventosa Avenida Miguel Bombarda, junto da antiga estação de Queluz-Belas, local de vários acidentes mortais — algumas pessoas mais apressadas eram atropeladas pelos comboios em marcha, ao tentarem passar para o outro lado da linha com a cancela em baixo (outras fariam de propósito, mas não se falava disso).
Lisboa ficava a cerca de vinte minutos de comboio, fosse o destino a estação do Rossio, como era quase sempre na minha infância, ou a de Entrecampos, como veio a ser mais tarde.
Manhãs de quinta-feira
Até aos 12 anos, passava as férias de Natal e da Páscoa e boa parte das férias grandes no Verão em casa dos meus avós, na ventosa Miguel Bombarda. Apesar de me fazerem as vontades todas (era muito mimado), havia um ritual de que eles não prescindiam, estivesse lá eu ou não: ir a Lisboa.
Os meus avós iam a Lisboa pelo menos uma vez por semana. Impreterivelmente. Para matar saudades. A minha avó adorava a cidade, onde viveu até por volta dos trinta anos. Foi lá que conheceu o meu avô (no Castelo de S. Jorge, onde ambos moravam). Foi lá que teve os dois filhos — a minha mãe nasceu na Rua do Paraíso, em Santa Engrácia2.
Tenho ideia de que a ida a Lisboa era sempre às quintas-feiras. Às quintas-feiras de manhã.
Apanhavam o comboio (nessa altura, o meu avô já não guiava, por causa do coração) e lá iam até ao Rossio.
Lá chegados, separavam-se. A minha avó ficava ali pela Baixa, visitava as igrejas, tomava café3 na Lua de Mel da Rua da Prata, passava as vistas pelas lojas, entrava na Pollux e no Braz e Braz (tem, como dizia o anúncio). O meu avô caminhava até ao Campo das Cebolas, para ir ter com os amigos das camionetas — ele teve mais do que uma empresa de camionagem; a primeira começou-a o meu bisavô galego, que era muito alto e a quem chamavam Peralta.
Por volta do meio-dia, encontravam-se nos Armazéns Grandella (actualmente a H&M do Chiado). Iam ao Celeiro comprar uns salgados para o almoço e voltavam para casa.
Quando passava férias com os meus avós, acompanhava-os, naturalmente. Tinha de vestir roupa bonita, de sair-de-casa (o contrário da de trazer-por-casa), que detestava. Mal chegávamos a Lisboa, seguia invariavelmente a minha avó, pelas igrejas, pelas lojas, pela Lua de Mel, até ao último andar da Pollux4 para ver os brinquedos. Ainda era muito novo para as conversas de adultos que o meu avô teria com os amigos. No final da manhã, íamos ter com ele ao Grandella, que eu achava que lhe pertencia — o meu avô herdou do pai galego o apelido Gandarela (e eu também), daí a minha confusão. Depois, Celeiro e casa (onde podia finalmente tirar a roupa bonita).
Por vezes, a minha avó obrigava-me a ir à loja da Cenoura, provavelmente para me comprar a roupa de sair-de-casa. Penso que ficava na Rua Augusta, que já seria fechada ao trânsito. Tinha de ser, pois havia alguém que reproduzia gravuras no alcatrão da rua, com lápis de cor5. Aquilo deixava-me completamente fascinado (e compensava a ida à Cenoura).
Até que houve uma quinta-feira em que a tradição se quebrou.
Teríamos ido, com certeza, a Lisboa, não fosse o Chiado (incluindo o Grandella que não era do meu avô) estar a ser devorado pelas chamas. Lembro-me de ver as imagens do incêndio no televisor da casa dos meus avós. Nesse dia, não tive de vestir a roupa de sair-de-casa, mas tive pena. Sempre gostei de ir a Lisboa.
Posso estar a efabular: se calhar, os meus avós não iam a Lisboa às quintas. Quando mais não seja, porque calha demasiado bem a esta crónica que o dia 25 de Agosto de 1988, data do incêndio no Chiado, tenha sido uma quinta.
De qualquer maneira, não demorou muito para que os meus avós voltassem à sua rotina. Bastou-lhes substituir o ponto de encontro. Em vez do Grandella, passou a ser a Igreja de S. Domingos6.
Sábados de manhã
Apesar de viver nos subúrbios, ia todos os dias a Lisboa, onde ficava a minha escola, que frequentei dos 7 aos 17 anos.
Os meus pais levavam-me de carro. O pára-arranca matinal (e o vespertino também) na quase sempre entupida IC19 traumatizou-me de tal maneira que nunca quis tirar a carta de condução. Ficar parado no trânsito ainda hoje me deixa ansioso.
Aos fins-de-semana, felizmente, não havia tantos carros a circular. Aos sábados de manhã, então, púnhamo-nos em Lisboa num instante.
Quando precisava de cortar o cabelo ia com o meu pai a um barbeiro junto à Praça do Rossio (hoje em dia, um restaurante para turistas), onde ele era conhecido e eu também passei a ser. Os empregados eram todos de meia-idade para cima, mas tratavam-me bem por eu ser miúdo.
Havia um de que eu gostava mais por ser careca e me fazer lembrar o meu avô das camionetas. E havia também uma mulher, que não cortava cabelos (só os homens é que tinham esse «direito»). Era manicure (qual é mesmo a profissão, manicurista?), ou seja, tratava das mãos dos clientes.
Já não me lembro de como se chamava, só de que fazia uma associação qualquer com a Regina Duarte (que gostava muito de ver no Roque Santeiro7, a minha primeira telenovela). Chamar-se-ia Porcina? Pouco provável. Regina? Também não creio. O meu pai lembrar-se-ia8.
A minha mãe também vinha connosco. A Lisboa, não ao barbeiro do Rossio. Provavelmente, faria peregrinação semelhante à da minha avó, enquanto nos cortavam o cabelo, a mim e ao meu pai.
Recordo-me de outros sábados de manhã, de sábados de manhã mais antigos. E de descer a Rua Garrett toda enfeitada para o Natal.
E de um dia — que não foi um sábado de manhã, talvez uma tarde de dia de semana — em que a minha mãe me levou a ver os brinquedos e as luzes na Baixa e no Chiado.
A memória é muito difusa, imperfeita, foi bem antes do incêndio, era mais pequeno. Lembro-me apenas de que a minha mãe perdeu os bilhetes de comboio na viagem de regresso para Queluz e que o revisor nos mandou sair antes da nossa estação. Se não for verdade, a minha mãe que me corrija.
Associo sempre esse momento àquelas cenas de filmes natalícios passados entre a brancura das ruas de Nova Iorque e as montras dos grandes armazéns, com comboios de brincar e bonecos de neve que se mexem sozinhos.
Uma sugestão
Na edição anterior do Diga-se referi que o site e o canal de YouTube do The Sticking Place eram excelentes recursos tanto para quem quer fazer cinema como para os que gostam de saber como se faz.
Desta vez, destaco três conferências de David Bordwell, com cerca de uma hora cada, em que o admirável académico analisa (passe a aliteração) a mise-en-scène (no sentido mais «teatral» de disposição dos actores no espaço) no cinema mudo dos anos 10 do século passado, durante os primeiros anos do CinemaScope e no cinema asiático dos anos 80 e 90, sobretudo na obra do taiwanês Hou Hsiao-Hsien.
Bordwell desenvolveu este tema no magnífico Figures Traced in Light e em On the History of Film Style, que ainda não li, mas que o autor disponibilizou em formato PDF, uns tempos antes de morrer.
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. Hoje não houve revisão, porque a Beatriz Marques Morais está a gozar de merecidas férias.
No domingo que vem, continuo esta crónica sobre a minha relação com Lisboa, enquanto habitante dos subúrbios, vulgo suburbano.
Tenham uma boa semana. Até ao próximo Diga-se de Passagem.
Pelo menos, espero que sim. O meu sentido de orientação é péssimo, mas dá-me imenso jeito que seja mesmo a oeste, por causa do trocadilho do título.
Só foram viver para fora de Lisboa, porque a minha mãe teve um problema de saúde e os «ares do campo» de Queluz ajudaram-na a restabelecer-se.
Será que tomava café? Em casa, depois do almoço a minha avó bebia cevada Pensal (passe a publicidade). Eu juntava-me a ela, enquanto o meu avô ia à rua beber a bica.
A Pollux é das poucas lojas referidas nesta crónica que ainda existe. Vou lá muito esporadicamente, para manter a recordação intacta.
Não era nada a lápis de cor, muito menos a lápis de cera, que era o que achava que estava a escrever. Como bem me lembrou o Paulo Cunha Fernandes, leitor atento e com memória, os desenhos eram feitos a giz colorido.
Que, curiosamente, também fora vítima de um incêndio décadas antes, tendo o telhado caído.
Uma vez vi o falecido José Wilker, que fazia do titular Roque Santeiro, em Nova Iorque. Tinha ido ver a mesma peça que eu. Devia ter-lhe dito o quanto gostava dele.
A minha mãe lembra-se: era mesmo Porcina.
Seu texto me fez pensar no Pedro Nava, renomado memorialista brasileiro.
Aqui na Bahia também se usa "para a semana", "para o mês", "para o ano"... Me parece que, no resto do Brasil, a expressão já caiu em desuso.
E eu não sou da época do Roque Santeiro, mas estou assistindo esporadicamente com minha esposa no streaming. Realmente é uma novela que faz jus à fama - até hoje é considerada uma das maiores da teledramaturgia brasileira. E o elenco todo de primeira. Embora o grande papel do Lima Duarte, para mim, seja o Zeca Diabo, no Bem-Amado, outra novela do mesmo autor, Dias Gomes, que também só pude conferir graças ao streaming.
A propósito da ideia de natal, é curioso que aqui no Brasil a imagem de um natal com neve e suéteres e toucas também seja muito presente por influência do cinema americano, embora fosse mais apropriado que o Papai Noel nos visitasse trajando sunga e sandálias.
Suburbano! Mais um grande texto, João. Adoro os truques que a memória nos aplica, como esse de ir à Lisboa às quintas-feiras... Mas vim aqui a comentar não apenas pelos merecidos elogios, mas também para compartilhar a experiência de publicação em série. Recentemente experimentei lá na minha carta, o DESNORTEANDO. Ia dividir a história em duas partes, acabou ficando com quatro - o último vai ao ar na próxima sexta-feira. O que observei foi que o primeiro fez um estrondoso sucesso, líder de comentários na história da newsletter, mas os subsequentes foram perdendo força. O segundo capítulo atingiu apenas 2/3 dos acessos do primeiro e o terceiro, a esta altura em que escrevo, está ligeiramente abaixo da marca do segundo. Ainda tem dois dias inteiros pela frente, antes que os assinantes recebam o próximo capítulo, mas é isso... Vamos ver como fica o encerramento que, sem falsa modéstia, acho que fechou muito bem a aventura toda.