Depois de o meu pai morrer, fui atrás das histórias de aventuras de que ele tanto gostava.
Comecei por reler Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas (e Auguste Maquet). Continuei pela sequela Vinte Anos Depois, de que nem conhecia bem a história. Tive de ler em inglês — já não há edições portuguesas nem desta nem das outras sequelas dos mosqueteiros.
Depois, atirei-me a O Corsário Negro, anti-herói mais unidimensional do que qualquer personagem de Dumas. O certo é que Emilio Salgari era dos autores predilectos do meu pai, como para tantos da sua geração, caso de Eduardo Marçal Grilo, que prefacia a edição que comprei.
Mas a personagem de Salgari de que o meu pai mais falava era Sandokan. Mais uma vez, não consegui encontrar qualquer edição portuguesa das suas aventuras que me merecesse confiança. É pena que os livros que faziam as delícias dos miúdos de meados do século XX já não morem nas livrarias e estejam esquecidos nos alfarrabistas.
Quanto a outros heróis da juventude do meu pai, reencontrei-os no cinema: The Adventures of Robin Hood, uma das parcerias felizes entre Michael Curtiz e Errol Flynn; Scaramouche, de George Sidney, tão bom quanto me lembrava; Ivanhoe, de Richard Thorpe, um tanto pior, não consigo simpatizar com Robert Taylor.
Quando eu era criança, adorava esses filmes, como adorava The Three Musketeers com Gene Kelly e Vincent Price1.
E vi finalmente The Scarlet Pimpernel, de Harold Young, com o malogrado Leslie Howard2. Nem sei se o meu pai conhecia o filme ou se gostava da personagem (é provável, gostava de todo o tipo de espadachins). Mas tenho a certeza de que partilhávamos o amor por D’Artagnan e Robin dos Bosques.
No meu caso, muito por culpa de D’Artacão e os Três Moscãoteiros, provavelmente a minha série preferida de todos os tempos (qual The Wire qual quê) e de Robin Hood, os desenhos animados da Disney que vi quatro vezes no cinema (obrigando vários membros da família a ir comigo), quando houve uma reposição nos anos 80.
Eu é que sou o herói
Os meus amigos mais antigos ainda gozam comigo por eu ter o hábito de fazer lutas de espadas invisíveis (contra adversários também eles inexistentes) quando era pequeno.
O que poderia eu fazer no pátio da primária, enquanto esperava pelos meus colegas, se não brincar sozinho? Filho único, tive de apoiar-me na minha imaginação. Aprender a abandonar-me a essas fantasias.
A experiência do meu pai foi diferente. Durante a infância em Portalegre, tinha com quem brincar. A minha tia, dois anos mais nova, que ficava com os papéis secundários mas importantes, como João Pequeno e Aramis. E os amigos, que se agarravam às personagens restantes.
Talvez lhes calhasse ser um «mau» genérico, carne para canhão das inúmeras refregas entre mosqueteiros e homens do Cardeal Richelieu. Ou um jovem valente, cheio de vontade de participar nas espadeiradas, não pensando que poderia ser a última, que corria o risco de ficar gravemente ferido, estropiado até (como os toureiros ou os pilotos de automóvel).
Nas brincadeiras de criança ninguém se magoa a sério. Quando muito, têm de fazer de alguém de que não gostam. O meu pai, não. Ele era sempre D’Artagnan ou Robin dos Bosques.
Mas sei que também gostava muito de Athos. Também me falava dele com carinho.
Ponho-me a pensar se não terá tido nalguma ocasião a tentação de escolher a personagem mais interessante d’Os Três Mosqueteiros em vez do herói.
Conde de la Fére
Porventura, Oliver Reed também gostaria de ter sido D’Artagnan. Ter-se-á imaginado a trazer as jóias da Rainha através do Canal da Mancha a tempo de lhe salvar a honra.
Se Richard Lester — o cineasta norte-americano que se tornou conhecido por filmar os Beatles e realizaria mais tarde Superman II (a «meias» com Richard Donner) e Superman III — tivesse decidido fazer The Three Musketeers e The Four Musketeers uns anos antes, talvez Reed pudesse ter ficado com o papel principal. Mas a escolha acabou por recair em Michael York, ainda com aspecto de rapazinho, apesar de só ter menos quatro anos do que ele.
De qualquer forma, o actor inglês nunca teve a inocência e jovialidade do herói de Dumas. Moreno, de olhos azuis, muito bonito, carismático. Ameaçador e sexy, ameaçadoramente sexy. Não podia estar mais distante do estereótipo britânico ou do ídolo de matinée.
Tinha a autodestruição inscrita e escrita por todo o lado. Ideal para representar Athos, o mais velho dos mosqueteiros, o mais leal, o mais inteligente, o primeiro a admirar a argúcia de D’Artagnan, que tratava como irmão. Mas também o mais bebedolas, o mais maltrapilho. O mais circunspecto e taciturno. O mais violento.
Só nos capítulos finais d’Os Três Mosqueteiros sabemos que também era aristocrata, o Conde de la Fére. Cuja mulher, por quem quase morrera de amores, o enganara e fugira dele, deixando-o a afogar mágoas no vinho que encontrava nas estalagens e tabernas de França.
Quando a volta a encontrar, não perde tempo a condená-la à morte (por esse e outros crimes). E nunca desvia o olhar enquanto lhe cortam a cabeça.
Mesmo sóbrio, em Vinte Anos Depois, Athos demonstra ser casmurro e inflexível, demasiado duro. Por pouco, não ataca os próprios amigos. E cabe-lhe a ele enfrentar Mordaunt, o mais sinistro dos inimigos dos mosqueteiros.
O bêbado insuportável
Oliver Reed não ficou sóbrio nem vinte anos depois, nem nunca. Bebeu literalmente até morrer. Teve o ataque cardíaco fatal num bar em Malta, durante uma folga das filmagens de Gladiator, no qual interpretava o dono e treinador de gladiadores que se transformava no mentor de Maximus (uma passagem de testemunho a Russell Crowe, outro bad boy dado a ataques de fúria).
O realizador Ridley Scott teve de usar um duplo e as artes negras do digital para concluir o arco narrativo da personagem de Reed. Até foi obrigado a matá-la. Deve ter-se arrependido de contratar o actor, que lhe tinha prometido não beber até acabar de filmar.
Ou não. Envelhecido (aos 61 anos, parecia ter mais dez) e vulnerável, já sem a ameaça sexual, ainda era um actor notável. Mesmo «digitalizado», Oliver Reed foi nomeado para um BAFTA.
Gladiator era o regresso à forma de um actor que não fazia um filme de jeito há décadas e era conhecido pelas gerações mais novas como o bêbado insuportável dos talk shows, para os quais era convidado quando não havia ninguém mais patético à mão.
No YouTube, encontram-se vários exemplos da degradação física e psicológica de Oliver Reed.
O episódio do Tonight Show de Johnny Carson em que Shelley Winters lhe despeja uísque em cima por ele estar a ser abertamente machista ainda pode passar como piada.
Mas a sua aparição no Late Night de David Letterman é ainda mais desconfortável para o apresentador do que a de Joaquin Phoenix décadas depois. Às tantas, a situação fica tão tensa que Letterman pergunta a Reed se lhe quer espetar uma pêra na cara. O actor não responde, mas percebe-se que sim.
Anos depois, quando foi ao talk show de Michael Aspel, imitou inadvertidamente Captain Beefheart quando se pôs a cantar blues. Houve até um programa dos anos 90 em que foi filmado a beber no camarim com uma câmara oculta. Mas nenhuma humilhação parecia detê-lo. Era como se estivesse a expiar algum pecado.
Já depois da morte, Oliver Reed foi elevado a paladino da causa anti-politicamente correcto, quando a maior parte das vezes não passava de um alcoólico que podia ser extremamente inconveniente (ou pior).
Em After Dark — versão inglesa de Travessa do Cotovelo, o programa da RTP no qual os convidados bebiam e fumavam enquanto tinham conversas intelectuais —, foi chamado para falar acerca da violência sobre as mulheres. A embriaguez é tal que pouco se percebe do que diz — a dicção é tão incompreensível quanto a lógica. Mas ouve-se bem quando chama «big tits» a uma feminista e a tenta beijar em directo.
Quando não estava a portar-se mal na televisão, Reed bebia com os amigos, que não pertenciam ao mundo do cinema. Eram jogadores de snooker, jardineiros, trabalhadores.
Bebia para esquecer? Teria tido um desgosto amoroso como Athos? Bebia para esconder a timidez extrema? Bebia para viver? Sabe-se lá. Bebia.
Os amigos sabiam que quando lhe tremia a face se deviam afastar. Mr. Nasty, como lhe chamavam, estava a chegar. Era bem possível que lhe apetecesse lutar à espada com eles.
E Oliver Reed não sofria do meu problema. Coleccionava espadas a sério.
O ar que se move
Num estranho programa do Channel 4 em que imagina a própria morte, Oliver Reed acerta na maneira como iria morrer cinco anos depois (não é que fosse uma aposta muito arriscada). E visualiza o epitáfio na campa: «He made the air move».
O que me faz pensar num Adamastor embriagado, cujo simples sopro semeia tempestades, matando valentes marinheiros e pondo a descoberta do caminho marítimo para a Índia em risco.
Mas na verdade ecoa o enorme elogio que Orson Welles lhe fez em 1980, quando devia estar a filmar The Brood, de David Cronenberg (no qual é excelente). No vídeo, nota-se que Reed não quer mostrar o quão tocado ficou com as palavras de Welles. De resto, passara o programa todo a tentar fingir não estar impressionado com a presença dele. Mas a gabarolice traíra-o.
Welles, por seu lado, não tem qualquer pejo em dizer o que pensa dele:
«He’s really one of those actors who could work in any medium. He displaces air. He displaces a lot of air.»
Breves impressões
Blue Sunshine, de The Glove
No início dos anos 80, já depois de Pornography, Robert Smith decidiu tirar umas férias dos Cure, preferindo o papel secundário de guitarrista nos Banshees de Siouxsie Sioux (diz-se Suzy Sue, informação da qual nunca me hei-de cansar).
Smith gravou apenas um álbum de estúdio com eles, Hyaena (e mais um ao vivo). Com a habitual presunção, Siouxsie atribui a imagem pela qual o líder dos Cure ficou conhecido à passagem pela sua banda.
De facto, Robert usava menos maquilhagem nos primeiros tempos dos Cure. Era bem menos pálido. Hoje em dia, quando não tem o pó de arroz na cara, parece que pôs base, como o Joker de Jack Nicholson, como se pode constatar nos telediscos e nos concertos da época.
Mais ou menos pelas alturas do hiato dos Cure, Smith formou outra banda, com o baixista dos Banshees, Steve Severin (fui confirmar: o Severin vem de Saber-Masoch e de «Venus in Furs» dos Velvet Underground).
Chamavam-se The Glove e lançaram um excelente álbum: Blue Sunshine.
Smith estava contratualmente proibido de cantar noutra banda que não os Cure, portanto tiveram de ir buscar Jeanette Landray. Provavelmente, se Smith tivesse sido o vocalista, os Glove soariam demasiado a Cure. Daí, talvez não: dependiam mais de sintetizadores e menos de guitarras do que estes.
A veia pop de Robert Smith (a quantidade de êxitos que compôs é impressionante) fica mais uma vez demonstrada em canções como «Like an Animal» e «Punish Me With Kisses». Sobretudo esta última, que merecia passar em todas as rádios nostálgicas dos anos 80.
Infelizmente (ou não), poucos ouviram a canção e o álbum. Um ano depois, Robert Smith voltaria aos Cure (tinha escrito Smiths, antes de corrigir; que grande confusão) e entraria na fase de maior sucesso da banda.
Há semanas, os Cure voltaram com Songs of a Lost World, que apresentaram num concerto de três horas em Londres, disponível no YouTube da banda.
Ainda é muito cedo para saber o que penso sobre o disco novo (preciso de mais umas quantas audições), mas tem-me apetecido ouvi-lo.
The Marvelous Mrs. Maisel, de Amy Sherman-Palladino
Da mesma forma que Gilmore Girls era a idealização da pequena cidade norte-americana (nos dias de hoje, ainda é mais difícil acreditar naquela harmonia), a série The Marvelous Mrs. Maisel tinha uma visão dos anos 50 tão romântica quanto a dos filmes de Hollywood da época.
Amy Sherman-Palladino, autora de ambas as séries, acredita que um bom remoque resolve qualquer problema, social ou pessoal. As Gilmore tinham sempre uma resposta espirituosa na ponta da língua. Midge, a protagonista de Mrs. Maisel, ainda mais. De resto, o seu ofício é a comédia.
As personagens de Sherman-Palladino não são tão pedantes quanto as de Aaron Sorkin (criador de The West Wing e The Newsroom), mas têm semelhante capacidade de discorrer sobre qualquer tema a cem à hora.
Tanto uma como o outro se inspiram nas screwball comedies dos anos 30 e 40, nas quais toda a gente falava depressa e bem. Sou capaz de apostar que His Girl Friday, de Howard Hawks, consta na lista de preferências dos dois.
Ao ver as cinco temporadas de The Marvelous Mrs. Maisel (que terminou no ano passado), deparamos com uma visão delicodoce da realidade: o mundo da comédia nova-iorquina em Greenwich Village, as famílias judias endinheiradas de Upper West Side. É tudo perfeito de mais. Até Lenny Bruce, que aparece como personagem, é uma versão menos ácida e verrinosa de si mesmo (pelo menos, nada tem que ver com a de Dustin Hoffman em Lenny, de Bob Fosse).
Contudo, apesar das reticências, é-me impossível resistir aos diálogos fulminantes, àqueles actores — sobretudo a Tony Shalhoub e Alex Borstein —, e até mesmo, confesso, à representação idílica do mundo. Sabe bem imaginar que as coisas eram ou poderiam ser assim.
Uma sugestão
Os cinéfilos queixam-se sempre de que faltam edições portuguesas de livros essenciais sobre cinema. Mas, aos poucos, a falha vai sendo colmatada. Há dois anos foi publicado O Estilo Transcendental no Cinema, de Paul Schrader, e pouco tempo antes, Ozu, de Donald Richie (que, no entanto, já é difícil de arranjar).
Agora, a E-Primatur pretende editar O Que é o Cinema?, de André Bazin, daquelas obras que até causa envergonha não existir em Portugal (penso que existe edição brasileira).
Portanto, além de louvar a iniciativa da editora, devemos apoiá-la, para que o livro seja mesmo publicado.
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão é da Beatriz Marques Morais. Espero que tenham uma boa semana. Até ao próximo domingo.
Da mesma maneira que Price nasceu para representar o Cardeal Richelieu, é difícil imaginar escolha mais bizarra para fazer de D’Artagnan. No entanto, a presença de um bailarino como Kelly permite uma coreografia feita de saltos, equilibrismos vários e movimentos graciosos.
Morreu durante a Segunda Guerra, quando os alemães atacaram um voo comercial da KLM nos céus da Galiza. Regressava de Portugal, onde tinha vindo passar uns dias. Aparentemente, há toda a sorte de teorias sobre o que motivou o ataque da Luftwaffe. Alguma delas poderia originar um belo filme de espionagem (e aventuras).
Uma bela forma de homenagem à memória do vosso pai, reler as estórias que ele gostava. Identifiquei-me.
É verdade que ele se tornou num "bêbado insuportável dos talk shows" , mas tenho pena que ele não tenha ido às trombas do Clive James quando este, com um ar muito condescendente, lhe perguntou "Porque é que bebes?". E se há vários youtubes que mostram a degradação física e psicológica de Oliver Reed, também há um que tem um dos meus momentos preferidos de toda a internet (a cara dele quando diz "I beg your pardon?" por volta do 1:35). https://youtu.be/OmnK0ty0RBE?si=YsSSY-b8U9FN9ymH