O Diga-se de Passagem desta semana é dedicado à música.
Em primeiro lugar, àquelas canções cujo encanto não se detecta imediatamente e se revela quando menos se está à espera. Chamei-lhes «patinhas feias», o que fará sentido, espero eu, depois de lerem o texto.
Em segundo, aos radialistas obrigados a abandonarem as ondas hertzianas e a encontrarem outras paragens.
Já não sei precisar quando cunhei o conceito da canção «patinho feio». Provavelmente, não fui o único a ter pensado nele, mas pesquisei no Google por ugly duckling songs e encalhei em canções infantis, a maior parte inspirada no famoso conto de Hans Christian Andersen.
Se calhar, devia explicar o termo. Quem conhece Den grimme ælling/O Patinho Feio1 (quem é que não conhece?) deve pelo menos imaginar do que se trata.
Uma canção «patinho feio» — ou «patinha feia», para simplificar — começa canhestra, às vezes cinzenta e aborrecida, outras simplesmente pirosa, para inesperadamente desabrochar numa beleza barroca, majestática, grandiloquente. Ou seja, transformar-se em cisne.
Para ser sincero, sei perfeitamente quando é que me ocorreu a noção de «patinha feia» — ao ouvir «Tugboat» dos Galaxie 500, em finais dos anos 90, princípios de 2000.
Escrevi que não sabia precisar, porque não consigo perceber como é que alguma vez achei que a canção tinha qualquer fealdade. Os primeiros acordes da guitarra-ritmo podem não ser tão belos quanto o solo feérico que assalta logo a canção, mas ninguém poderá dizer que são feios.
A única explicação de que me lembro é o início de «Tugboat» me fazer lembrar uma canção de que não gostava na altura (e entretanto esqueci por completo).
Guitarras pré-históricas
Os Dinosaur Jr. têm várias tipos de canções. Pesadas: «Sludgefeast» (mais metal do que punk hardcore, género onde começaram). Melodiosas: «Tarpit» (que basicamente inventou o shoegaze) e «Forget the Swan» (cantada a meias por Lou Barlow e J. Mascis, quase folk). Grandiloquentes (o que os anglo-saxónicos chamam anthemic): «Freak Scene» (que dá sempre vontade de gritar «When I need a friend, it’s still you», como os adolescentes no documentário The Year Punk Broke).
E «patinhas feias». Os Dinosaur Jr. têm mesmo o epítome da «patinha feia»: «They Always Come». Para quem ainda estiver com dúvidas sobre o que é que estou para aqui a falar, ouçam-na e perceberão logo.
Nem sequer gosto do primeiro minuto e meio. Se ficasse por ali, seria das canções menos conseguidas da banda. Começa meio parola, sem graça. A voz de Mascis — monótona e anasalada (lembra-me sempre o Chris de Family Guy2) — parece ter encontrado um instrumental condizente (no pior dos sentidos).
Contudo, não fosse o primeiro minuto e meio, o que se segue não seria tão deslumbrante. Quando o solo de guitarra irrompe, «They Always Come» transforma-se numa canção pungente, emocional, bela. É como se os Dinosaur Jr. tivessem inventado o shoegaze uma segunda vez, só para não restarem dúvidas.
Bug, o álbum a que «They Always Come» pertence, foi o último dos anos 80 com o trio original: J. Mascis, Lou Barlow e Murph. Os Dinosaur Jr. tornar-se-iam durante muito tempo na banda a solo de Mascis, depois de este ter despedido os outros dois.
Adoro J. Mascis, apesar de não gostar de outros guitar heroes. Sei que é incapaz de juntar quatro palavras quando é entrevistado, que se esconde de tudo e todos atrás da guedelha grisalha, e que não é propriamente o melhor amigo do mundo, sobretudo para Lou Barlow, mas o que se pode fazer?
Barlow e Murph regressariam aos Dino nos anos 2000, o que inspirou um dos primeiros guiões que escrevi — Sick Puppy, um piloto de uma série que nunca foi produzida. Desde aí, gravaram vários álbuns juntos e tocaram inúmeras vezes ao vivo. Vi-os pelo menos umas quatro vezes.
A primeira, no Festival Paredes de Coura de 2007, foi a melhor. Apareço nas imagens da gravação do concerto, estou ali perto do palco. Lembro-me de gritar várias vezes pelos Sebadoh, a banda de Barlow que infelizmente nunca vi ao vivo e de que até gostei primeiro — comprei Harmacy, de 1996, na Valentim de Carvalho do CCB, por causa de «Ocean», que passava muitas vezes na Xfm. Não posso garantir, mas fiquei com a ideia de que Lou3 às tantas me mandou calar.
O que vale é que Mascis estava do outro lado do palco e nunca me ouviria no meio daquela barulheira toda. Aliás, ali à frente, nem se ouviam as vozes deles, só aquela «wall of sound» feita de guitarras e baixo — havia mesmo uma parede de amplificadores, que na minha memória eram laranja (mas na realidade, não).
O glamour do pós-country
Conhecia muito mal os Roxy Music quando entrei na sala para ver Velvet Goldmine, a homenagem de Todd Haynes ao glam rock.
Não é que tenha ficado a saber muito mais depois de ver o filme (três vezes no cinema, um recorde na idade adulta, ou uma repetição do desejo de criança de ver o mesmo filme para sempre).
Se Brian Slade é obviamente uma versão de David Bowie e Curt Wild uma mistura de Iggy Pop com Lou Reed (perfazendo assim a minha «santíssima trindade»), nenhuma das personagens é Bryan Ferry ou Brian Eno. Talvez Jack Fairy, mas só à superfície (apesar dos brilhantes e da maquilhagem, Ferry e Eno são demasiado hetero para encaixarem na personagem).
No entanto, poucos dias depois de ter visto Velvet Goldmine (pode até ter sido no mesmo dia), fui à procura do primeiro álbum dos Roxy Music (auto-intitulado Roxy Music), que tem várias canções da banda-sonora do filme de Haynes — como não quis «oficializar» aquela espécie de biografia, Bowie recusou que a sua música fosse usada e os autores tiveram de ir bater a outra porta.
Em boa hora. Roxy Music é mais misterioso, mais estilizado, mais cabaret do que Ziggy Stardust and the Spiders from Mars. «2HB» (elegantérrima, dedicada a Humphrey Bogart e Lauren Bacall), «Ladytron» (que daria nome a uma banda de electropop décadas depois) e «Bitters End» (doo-wop posh e decadente) são canções imbatíveis (e ainda havia «Bitter Sweet» de Country Life, na versão dos The Venus in Furs de Thom Yorke).
De fora, ficaria, no entanto, «If There Is Something», outra grande «patinha feia». Curiosamente o CD que comprei (talvez na Virgin dos Restauradores) salta sempre na parte em que a canção abandona o piano honky-tonky (que fora do Oeste norte-americano só deveria ser usado pelos Rolling Stones).
Mesmo quando a ouço noutras plataformas tenho medo que não saia dali, que se desconjunte naquele country manhoso. Mas os sintetizadores de Eno (que haveria de dar o nome ao remédio para a azia) e a voz de Ferry (empenhado em imitar uma cabra montanhesa ultra-romântica) depressa esfrangalham a canção, que muda de registo uma série de vezes, sempre alicerçada no saxofone de Andy Mackay, na guitarra de Phil Manzanera e nas feitiçarias analógicas de Eno.
Normalmente, não gosto de canções que se passeiam por vários géneros, que querem mais ser música clássica do que pop — ópera-rock deve ser o termo mais abominável da música. Abro uma excepção para esta. Os Roxy Music eram demasiado estranhos — o que se pode comprovar nesta prestação no programa Old Grey Whistle Test4 — para serem insuportáveis.
O barqueiro intelectual
Depois de escrever sobre «They Always Come» e «If There Is Someting» ainda é mais complicado agrupá-las a «Tugboat».
A canção que fecha Today, primeiro álbum dos Galaxie 500, nunca deixa de ser cisne, do início ao fim, ainda que só alcance a estratosfera com aquele belíssimo solo de guitarra de Dean Wareham (um pouco como o de J. Mascis em «They Always Come»).
Conheci os Galaxie 500 nas páginas do Expresso, numa crítica de João Lisboa à caixa azul com os três álbuns da banda. Não me lembro de uma única palavra desse texto, mas foi suficiente para a ter comprado.
Nessa altura, adquiria discos «às cegas», ou melhor «às surdas», desde que tivesse o aval de um dos «meus» críticos — João Lisboa foi responsável por ter chegado a algumas das minhas bandas preferidas: Prefab Sprout e Go-Betweens, à cabeça.
As outras canções dos Galaxie 500 — que, como os Dinosaur Jr. (e os Pixies), são do Massachussets (deve ser qualquer coisa nas águas) — não me «entraram» logo, mas apaixonei-me imediatamente (e perdidamente) por «Tugboat» — ouvi-a incontáveis vezes, com o volume no máximo e o quarto às escuras.
Por causa da caixa, azul, durante muitos anos não soube como eram as capas dos álbuns dos Galaxie 500, mas em compensação pude ver os vídeos realizados por Sergio Huidor para os «singles» (muitas aspas) da banda, numa altura em que não havia YouTube e seria uma sorte inexplicável apanhar qualquer coisa deles na televisão.
Já não tenho a certeza, mas acho que os vídeos vinham num CD-Rom à parte, que se punha no computador, quando as torres ainda tinham o pratinho para pôr os CD e os DVD.
Revendo-os agora, parecem bem mais violentos do que outrora. Achava que o vídeo de «Tugboat» acabava com fogo de artifício, mas se há fogo é das explosões e das bombas. Ainda pensei ter confundido com o de «Fourth of July», no qual até fazia mais sentido haver foguetes de festa. Mas não: mais imagens de guerras, execuções e quejandos. Resolvi que era melhor nem espreitar o de «Blue Thunder».
Reza a lenda (que neste caso é capaz de ser verdadeira) que «Tugboat» homenageia Sterling Morrison, guitarrista dos Velvet Underground, que se foi doutorar em Literatura Medieval na Universidade do Texas e acabou a conduzir reboques de barcos (os ditos tugboats) para sobreviver.
Morrison morreu com cinquenta e poucos, vítima de cancro, já depois de a canção dos Galaxie 500 ter sido lançada e de ter participado na reunião dos Velvet nos anos 90, mas antes de ver a amiga Maureen Tucker a apoiar o movimento Tea Party (e talvez Donald Trump, informação que não consigo confirmar).
Os Galaxie 500 não duraram muito. Dean Wareham teve os Luna e depois Dean & Britta e ainda foi actor de Noah Baumbach (no esquecido Mistress America, de que gosto tanto). O baterista Damon Krukowski (que também tem um Substack) formou os Damon & Naomi com Naomi Yang, a baixista dos Galaxie e sua mulher.
Uma sugestão
Adorava a Xfm, que já referi nesta edição, por se sentir tanto a «voz», os gostos dos radialistas que punham música. A X terminou há quase trinta anos e o panorama não parou de piorar — a rádio portuguesa resume-se a playslists anónimas e a programas de conversa para quem está parado no pára-arranca do trânsito matinal.
Depois do desaparecimento da Rádio SBSR, em Setembro do ano passado, Tiago Castro e Ricardo Mariano, dois dos nomes mais conhecidos da estação, tiveram de arranjar outra plataforma para os seus programas de autor, o podcast5.
Eis os links:
A Floresta Encantada, de Tiago Castro, «dedicado aos sons do rock psicadélico, rock progressivo, krautrock e suas derivações, essencialmente focado nas décadas de 1960 e 1970 (mas por vezes também viaja por outras épocas)».
Vidro Azul, de Ricardo Mariano, explora sonoridades melancólicas e etéreas. Passa por vários géneros, do folk ao ambient.
Happy Mondays, em que os dois «esgrimem argumentos musicais sobre o que mais os tem excitado».
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão não é da Beatriz Marques Morais, que desta vez não teve tempo. Tenham uma boa semana. Até ao próximo domingo.
Sempre que penso n’O Patinho Feio, visualizo o Calimero com a casca de ovo na cabeça, que nem sequer é um pato. Em Portugal, «calimero» tornou-se adjectivo para descrever quem passa a vida queixar-se, mas por alguma razão é assim que imagino o pobre animal de Christian Andersen. Como é habitual nas minhas «pesquisas», caí pelo «buraco do coelho» e fui parar a uma canção dos Stereolab: «Caliméro».
Acabo de descobrir que Seth Green baseou a voz de Chris no Buffalo Bill de The Silence of the Lambs, o vilão com a voz mais engraçada a par da de Bane de The Dark Knight Rises. Deviam criar um Óscar honorário para Ted Levine e Tom Hardy por causa disso.
Esta paródia dos Moloko a Brian Eno — que no Old Grey Whistle Test parece ter engolido a BBC Radiophonic Workshop por inteiro— é bastante divertida.
Que o podcast, que nos últimos anos se tem virado em demasia para as entrevistas, cumpra o que a rádio já não consegue fazer.
Olá, por onde posso encontrar a nova plataforma do Tiago Castro e do Ricardo Mariano? Desde já agradeço
Talvez do tipo de textos que mais adoro ler: música.