Uma fotografia tirada pelo fotógrafo Mick Rock em 1972 regista o feliz encontro entre os três músicos num momento em que as suas vidas estavam prestes a mudar.
Lou Reed, David Bowie e Iggy Pop. A minha santíssima trindade1. Houve de certeza outras (muitas) vezes em que estiveram os três juntos. Mas essa fotografia, tirada no Hotel Dorchester em Londres, ficou para a história.
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Desde a inauguração nos anos 30, o Hotel Dorchester, junto ao Hyde Park em Londres, acolhera várias figuras ilustres, de actores a escritores. A fachada austera e modernista deixava sonhar com interiores luxuosos, onde a art déco imperava. Era o local apropriado para a apresentação da iminente tournée de Ziggy Stardust nos EUA2.
Não faço ideia se estava frio ou calor nesse Julho de 1972 (achamos sempre que em Londres nunca faz calor). Nem sei se a festa foi de dia ou de noite. Devia haver imensa gente lá dentro — jornalistas, outros músicos, celebridades em geral. E fotógrafos para documentar o acontecimento. Entre eles, Mick Rock, cuja alcunha anunciava ao mundo o género musical de que mais gostava.
Rock aproveitou para juntar David Bowie a dois músicos norte-americanos que andavam ali pelo hotel, mais maltrapilhos do que os demais convivas — não estavam propriamente na mó de cima.
Na fotografia, Bowie, disfarçado de Ziggy, é quem está mais sério. Lou Reed, não fosse pelas unhas pintadas de preto, pareceria um turista acabado de aterrar na capital inglesa. No meio deles, Iggy Pop é o mais apalhaçado, com um maço de Lucky Strike na boca e uma t-shirt dos T. Rex (a banda de Marc Bolan que lutava com Bowie pela atenção dos adolescentes ingleses).
O Pai
Havendo uma santíssima trindade, tem de haver um «Pai». E ele chama-se Louis Allan Reed.
Enquanto principal compositor e letrista dos Velvet Underground, Lou deu o mote para boa parte da música mais interessante dos últimos sessenta anos. Na altura, ninguém ligou nenhuma, mas a influência encontra-se por toda a parte, do shoegaze à pop mais clássica, passando por todos os experimentalismos.
Sempre que se fala da banda que Reed formou com o irmão-inimigo John Cale, Sterling Morrison e Maureen «Moe» Tucker, vai-se buscar a famosa citação de Brian Eno — as poucas pessoas que compraram o álbum da banana (The Velvet Underground & Nico) quando saiu criaram todas uma banda (não a mesma, entenda-se).
Sem os Velvet Underground, não existiria Bowie (David teria ficado simplesmente Jones?) e Iggy seria necessariamente diferente (Cale produziu o primeiro álbum dos Stooges).
À altura da fotografia de Mick Rock, muitos dos que se passeavam pelo Dorchester nem saberiam quem era Lou Reed. Nem o próprio imaginava a importância que já tinha e jamais deixaria de ter.
Depois de sair dos Velvet em litígio com o empresário Steve Sesnick, teve de voltar para casa dos pais, onde pensou seguir a carreira de contabilista. Lançara um álbum a solo, auto-intitulado, com algumas canções que não gravara com a banda. Mais uma vez, não obteve o sucesso que almejava. Devia parecer-lhe que nunca chegaria — e Reed não se cansava de o perseguir (da maneira mais heterodoxa da história).
Alcançou-o no álbum seguinte. Transformer, produzido por Bowie e pelo seu guitarrista Mick Ronson, sairia ainda em 1972. Continua a ser o seu maior êxito.
As canções mais conhecidas — «Walk on the Wild Side» e «Perfect Day» — são desse álbum, assim como «Satellite of Love» (lindíssima), «Vicious» (das melhores canções de abertura de um disco), «Make Up» (elegante e decadente) e «Goodnight Ladies» (com que cheguei a acabar a noite, quando punha música).
Apesar de Bowie propagandear a sua bissexualidade (para depois afirmar que sempre tinha sido um heterossexual no armário), nunca assinou uma obra tão queer quanto Transformer.
«Walk on the Wild Side» é uma ode a várias figuras que giravam à volta de Andy Warhol, o mentor de Reed — Joe Dallesandro, um ex-prostituto que entrou em vários filmes do artista nova-iorquino e de Paul Morrissey e chegou contracenar com Jane Birkin em Je t’aime moi non plus, de Serge Gainsbourg; Candy Darling, uma mulher transgénero que originou uma das canções mais bonitas dos Velvet: «Candy Says», cantada por Doug Yule (que substituíra John Cale).
A colaboração entre Reed e Bowie não durou muito. Aparentemente chegaram a vias de facto, que é como quem diz andaram à pancada, pouco depois do lançamento de Transformer. Nessa altura, Lou Reed encaminhava-se ou já estava na fase mais desregrada da sua vida, com o cabelo oxigenado e entregue a todas as drogas duras do mundo.
A amizade perdurou, apesar de tudo. Lou Reed foi um dos convidados para a festa dos cinquenta anos de Bowie em 1997, no Madison Square Garden.
O Filho
O pequeno David Jones deve ter aprendido a ser extraterrestre a ver Quatermass and the Pit, a magnífica série de ficção científica de Nigel Kneale, feita por tostão e meio num estúdio de televisão em 1958, que ensinou a uma geração inteira que nós, humanos, éramos descendentes dos marcianos.
De resto, Jones, que virou Bowie para não se confundir com o vocalista dos Monkees (e porque, gosto de imaginar eu, sentia uma proximidade com a personagem de Farley Granger em They Live by Night, de Nicholas Ray), começou por ser bem sucedido quando se afastou definitivamente do Planeta Terra — com «Space Oddity» e, sobretudo, com a personagem do alienígena Ziggy Stardust.
Ziggy Stardust and the Spiders from Mars saíra um mês antes da fotografia do Dorchester. Depois das mais variadas tentativas, Bowie atingira finalmente a fama.
Mas passado um ano, já a personagem vampirizava o actor — não foi Bowie sempre um actor, principalmente quando fazia música? David já não sabia se os miúdos gostavam dele por causa do mullet pintado de ruivo, das roupas extravagantes, da provocação sexual ou por causa da música.
Se Aladdin Sane foi outro grande sucesso (na linha de Ziggy), Pin Ups, um álbum de versões, foi muito mal recebido (ainda hoje é considerado dos seus piores). A meio de um impasse criativo, David Bowie só pensava na melhor forma de acabar de vez com Ziggy.
O concerto no Hammersmith Odeon, que D. A. Pennebaker registou num documentário com o nome do álbum, seria o último em que encarnaria a personagem, para nunca mais voltar, apesar de ter mantido o mullet por uns tempos.
Era altura de outra metamorfose, Bowie não gostava de ficar na mesma pele durante muito tempo. Depressa chegaria o fascínio pela música negra americana, com a sua versão de soul e funk em Young Americans, de 1974. E o período de depressão e paranóia ligado à ingestão de grandes quantidades de cocaína e toldado por ideias fascistas, documentado em Cracked Actor, de Alan Yentob.
Diga-se — digo eu, pelo menos — que dentro do glam rock, o género que ajudou a celebrizar, há coisas tão ou mais interessantes do que o rock a roçar o hard de Ziggy Stardust3: os Roxy Music, de Eno e Bryan Ferry, os T. Rex, de Marc Bolan, os menos óbvios Gary Glitter (condenado por pedofilia muitos anos depois) e The Sweet, até o próprio Bowie de Hunky Dory4.
A importância de Bowie nesta época também se deve à sua capacidade (e poder) de resgatar outros artistas como Lou Reed e Iggy Pop, dos quais era confesso admirador e que haviam influenciado a sua música — o inglês é um grande artista-curador, sempre com as antenas ligadas à procura da próxima corrente artística interessante, que parasitava, mas também apoiava e dava a conhecer.
No verão de 72, dentro do Hotel Rochester, faltava ainda meia década para Bowie chegar a Berlim e entrar na fase mais brilhante da sua carreira.
O Espírito Santo
Só me dei conta de que Iggy Pop tinha um nome próprio depois de ouvir incontáveis vezes «China Girl», uma das minhas canções preferidas5. Lá para o fim, o objecto responde à megalomania ditatorial do sujeito com um «Oh Jimmy, just you shut your mouth».
Quem seria esse Jimmy? Era James Osterberg, que, muito novo, tocou bateria num banda de blues chamada The Iguanas, tendo ficado para sempre ligado ao réptil com esse nome (Iggy é diminutivo de Iguana).
Não é que Iggy tenha muito que ver com o bicho, que, não fossem os olhos epilépticos, pareceria calmo e sonolento. O vocalista dos Stooges estava sempre ligado à corrente, tanto ou mais do que a guitarra de Ron Asheton ou o baixo de Dave Alexander.
Constantemente de tronco nu, como se qualquer pedaço de roupa fosse pele a mais, Iggy saltava no palco, pulava para cima do público, sobre o qual caminhava, barrava-se com manteiga de amendoim, gritava, cantava, feria-se, sangrava.
Num dia mais azedo, Lou Reed (que era dado a dias azedos) disse que Iggy nem sequer era uma boa imitação de uma má versão de Jim Morrison. Tinha razão e não tinha. Ainda bem que, apesar de venerar o vocalista dos Doors, Iggy não era como ele. Era mais destrambelhado, menos poseur. Era incapaz de não ser genuíno, um pateta alegre ao mesmo tempo destrutivo e reparador.
Pode ter vivido os primeiros anos num parque de auto-caranavas — um dos locais mais deprimentes que se pode imaginar (talvez nesses tempos fosse diferente) —, mas nunca lhe faltou o amor do pais, que até trocaram de quarto para ele ter espaço para a bateria. (Lou Reed, por exemplo, queixou-se sempre da família e o ambicioso Bowie demonstra várias características de quem sofreu de falta de atenção dos progenitores.)
No momento da fotografia de Mick Rock, Iggy estava a preparar-se para gravar o último álbum dos Stooges, que já não eram bem os Stooges. Eram os Iggy and the Stooges, com James Williamson a substituir Ron Asheton na guitarra. Os clássicos «Search and Destroy» e «Gimme Danger» ficaram para a posteridade, mas Raw Power nunca perdeu a fama de ter pouca potência, de ser muito manso, por culpa da masterização de David Bowie (Iggy lançaria a sua versão no final dos anos 90).
Iggy Pop também estava completamente viciado em heroína e não seria a pessoa mais estável à face da terra. O insucesso dos discos — nem o primeiro The Stooges, nem o extraordinário Fun House (entre o punk, o jazz e a música experimental, nem Raw Power receberam as boas graças do público.
Só na segunda metade da época, depois de reencontrar Bowie em Berlim Ocidental, é que Iggy teve reconhecimento, com os álbuns Lust for Life e The Idiot. Bowie, que produziu os dois, mais do que ressuscitava a carreira do amigo. Dava-lhe vida.
And then there was none
A última vez que vi Lou Reed ao vivo foi a melhor. Aliás, nem adorei as duas anteriores (uma durante a Expo ’98).
Fui com dois amigos de carro a Coimbra para assistir ao concerto e acabámos a noite a comer cachupa numa discoteca qualquer antes de voltar para Lisboa.
Eram alturas de Raven, o duplo álbum que Reed fez a partir do espectáculo POEtry, de Robert Wilson, no qual participava o ainda desconhecido Anohni Hegarty, que também veio à cidade dos estudantes nesse verão de 2003. Lembro-me de que Reed cantou uma versão belíssima de «The Day John Kennedy Died» do álbum Blue Mask.
Não vi David Bowie por muito pouco. Preparava-se para comparecer a um festival no Estádio do Dragão no Porto no verão de 2004, ao qual Iggy Pop também era para vir, quando teve um problema no coração e cancelou o concerto. Penso que não voltou a tocar ao vivo.
Felizmente, pude ver Iggy Pop. Melhor ainda, pude ver os Stooges. Que estiveram em Portugal no verão de 2005. Tocaram muitas canções dos dois primeiros álbuns e nenhuma de Raw Power, porque o guitarrista voltara a ser Ron Asheton, que tinha tido um papel menor nesse álbum.
Iggy, à época com quase 60 anos, lá estava de tronco nu, musculado. Não parou de pular em cima do palco, de subir aos amplificadores. Já não me recordo se fez crowdsurfing, embora seja mais do que provável, mas tenho a certeza de que não se barrou com manteiga de amendoim.
Da santíssima trindade, é o único que resta. Lou Reed morreu em 2013. David Bowie, em 2016. Apesar de todos os excessos, Iggy Pop ainda está aí para as curvas.
Pensar que chegará a altura inevitável em que nenhum deles estará vivo é triste.
Duas sugestões
Os meus amigos Daniel Pereira e Miguel Patrício voltam à carga com Os Mestres Japoneses Desconhecidos, ciclo de três filmes inéditos fora do Japão: A Imagem de uma Mãe, de Hiroshi Shimizu, Roída até ao Osso, de Tai Katô, e Yôko, a Delinquente, de Yasuo Furuhata.
A quarta edição dos Mestres começa esta semana (entre os dias 13 e 15 de Janeiro) no Cinema Trindade no Porto. E continua no final do mês (a partir de dia 30) em Lisboa, no Cinema City Alvalade.
Quem puder, vá. Estes ciclos são imperdíveis, até pela raridade dos filmes.
Na semana passada esqueci-me de referir que criei uma lista de Substacks portugueses.
Quando me iniciei nesta plataforma, encontrei óptimas newsletters em português, mas eram quase todas brasileiras. Só aos poucos fui dando com as portuguesas, pelo que resolvi compilá-las para quem as quiser descobrir.
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão é da Beatriz Marques Morais. Tenham uma boa semana. Até ao próximo domingo.
Os melómanos gostam de listas. Que tanto podem ser de dez, de cinco ou de três. Quase todos têm a sua santíssima trindade. Robyn Hitchcock anunciou a sua no outro dia: Syd Barrett, Captain Beefheart e Bob Dylan.
Tony Defries, espalhafatoso e com a mania das grandezas, não fazia a coisa por menos — se calhar, estou a pensar é no Jerry Devine de Eddie Izzard em Velvet Goldmine, que é obviamente baseado no então empresário de David Bowie. Já agora, no filme, Lou Reed e Iggy Pop foram aglutinados na personagem Curt Wild, interpretada por Ewan McGregor.
Estou a ser injustíssimo com canções que adoro: «Starman», «Suffragette City» e mesmo «Ziggy Stardust».
Para quem se interessar pelo glam rock, recomendo o espantoso calhamaço Shock and Awe, de Simon Reynolds, sobre esse género andrógino, fluído e berrante.
Na minha cabeça, existe uma ligação directa entre a «China Girl» de Iggy Pop e «Atmosphere» dos Joy Division, canção lançada já depois da morte de Ian Curtis. Curtis, que era um grande admirador desta santíssima trindade, ter-se-á suicidado ao som de The Idiot, do qual consta esta «China Girl».