O FM ensinou-me a aprender
O jogo de computador levou-me a tocar piano, a compor música, a ler em alemão, a andar de bicicleta (e a ganhar a Champions duas vezes)
Aproveito o início do ano para testar algumas mudanças no Diga-se de Passagem:
Acabei com as breves impressões, que atravancavam um bocado as newsletters, mas passará a haver recomendações no final de cada mês, que as substituem de alguma forma.
Mantenho as entrevistas a figuras da cultura — já estou a congeminar a próxima, a sair no decorrer de Janeiro.
E nos restantes domingos seguem as crónicas sobre tudo e mais alguma coisa (mas sempre em torno do cinema, da música e dos livros), como a de hoje, sobre aprender coisas novas — tocar piano ou andar de bicicleta — e o jogo de computador Football Manager.
Ao comprarem livros, CD e DVD através dos links da Amazon e da Wook, recebo uma pequena comissão.
Se não tivesse começado a jogar Football Manager (FM para os amigos) numa tarde enfastiada de 2014, provavelmente não teria perdido meses da minha vida num jogo de computador — literalmente: joguei cerca de 877 horas só na versão de 2018, o que corresponde a mais de 36 dias.
Mas jamais teria percebido que depois dos trinta anos ainda era possível aprender coisas novas, mesmo se tão inúteis quanto saber jogar FM.
Não teria lido um romance (juvenil) em alemão. Não saberia tocar Bach1 ao piano. Não saberia andar de bicicleta. Não teria feito música. E não teria tido o prazer de conquistar a Champions League duas vezes como Brian Clough no Nottingham Forest.
Uma realidade paralela
Foram horas e horas a viver num mundo paralelo, no qual era um treinador de futebol e tinha de me preocupar com os treinos da minha equipa, em contratar os melhores jogadores, em conversar com os que estavam descontentes por não lhes ter melhorado o contrato, em encontrar a melhor táctica para derrotar o próximo adversário, a considerar se devia ou não investir num novo centro de treinos, enquanto tentava agradar à direcção do clube2.
Tinha jogado Championship Manager (o FM antes de mudar de nome) em meados dos anos 90 — escolhia sempre a Fiorentina, à altura na Série B italiana e ainda sem Rui Costa — e, antes, o velhinho Football Manager do Spectrum (que nada tem que ver com o actual FM). Mas nada me preparara para esta complexidade.
Sempre gostei mais de jogos de estratégia do que de First-person Shooters, mas a verdade é que não tinha paciência para jogar como deve ser. Eu era mais meia bola e força, jogava às três pancadas.
Com o FM, isso não funcionou. Tive de aprendê-lo a sério. Li páginas e páginas de fóruns. Vi outros a jogar no YouTube — o Jack do WorktheSpace, que ainda sigo, quando mais não seja para acalmar o meu vício. Falhei inúmeras vezes. Fui despedido outras tantas.
Aos poucos, fui começando a acertar. Levei o Rochdale da League Two (a quarta divisão inglesa) à Premier League. «Trabalhei» no Copenhaga, onde ganhei uma Liga Europa e alguns campeonatos da Dinamarca. «Treinei» o Benfica, sendo várias vezes campeão, mas ganhando uma singela Champions. Pus o «meu» Real Sport Cube de Massamá na Primeira Liga, mas a direcção vendeu os meus dois jogadores preferidos e desisti do jogo irritadíssimo.
Também me lembro da frustração ao não conseguir fazer do Chaves um «grande» em Portugal. O FM provoca emoções fortes, sobretudo quando se perde meia-dúzia de jogos seguidos (percebo bem o que Ruben Amorim está a passar no Manchester United). Não há nada pior do que ser despedido antes de se poder aproveitar a pérola que se descobriu nos sub-19 da Finlândia.
A minha coroa de glória foi ter elevado o Casa Pia do Campeonato de Portugal (actual Liga III) aos píncaros do futebol europeu, conquistando duas Ligas dos Campeões, uma Taça Intercontinental, cinco campeonatos portugueses e uma série de taças. Treinei Romário Baró, o meu eterno capitão, Afonso Sousa, João Félix, o Jota do Benfica e outros tantos jogadores que não alcançaram o potencial na «vida real» (detesto ter de incluir Félix neste lote, ele que me parecia ser a segunda encarnação de Dennis Bergkamp, o meu segundo jogador preferido de todos os tempos).
Não alcançar o potencial
No FM, à medida que os jogadores «verdadeiros» se reformam, vão sendo lançados novos jogadores fictícios, a que se costuma chamar regens. Como treinadores, podemos ver o seu potencial, mas estes só o atingirão se tiverem oportunidades para jogar e, ainda mais importante, a mentalidade certa.
Ao contrário do que muita gente pensa, ao contrário do que eu pensava, é possível aprender coisas para as quais não temos jeitinho nenhum.
Antigamente, dizia que não sabia andar de bicicleta como se fosse uma fatalidade, como se não pudesse fazer nada em relação a isso. Achava que tinha passado o momento, que ou se aprende na infância ou nunca mais.
Mas o Football Manager ensinou-me que nunca é tarde de mais.
Antes de tudo, aprender implica aceitar a possibilidade de jamais sermos os melhores. Podemos sempre melhorar, é certo. «Ser o melhor» é bastante mais improvável, quando não impossível, até pela subjectividade que o título acarreta.
Mais do que isso, aprender obriga-nos a enfrentar as nossas imperfeições, a lidar com a realidade de (ainda) não sermos bons ou de não estarmos sequer num nível aceitável. Isto pode parecer óbvio, e é, mas o medo de errar deve ser a principal razão por que a maioria das pessoas desiste de praticar uma nova actividade. Ninguém gosta de se sentir vulnerável.
Para se aprender, é preciso passar por várias frustrações, quando não mesmo «humilhações». Ainda no outro dia, toquei piano pela primeira vez ao vivo, num recital de Natal da minha escola de música. Toquei, como quem diz. No meio de não-sei-quantas crianças e alguns adultos fui o único a bloquear. Enganei-me num trecho logo ao início e não conseguia sair dali. O meu professor teve de sentar-se ao meu lado e lá fui eu aos solavancos até ao fim da canção.
Fiquei triste e irritado comigo mesmo. Mas encolhi os ombros. Noutros tempos, seria motivo para desistir, para nunca mais olhar para um piano na vida. Seria mais uma prova cabal de que não me devo expor, de que não devo ser o centro das atenções (medo que, felizmente, não se traduz na escrita).
Tenho pânico de falar em público (que rivaliza com o meu medo de andar de avião — o Seinfeld tinha uma piada qualquer sobre isto). É caso para dizer que não tenho jeito. Mas estou convencido de que, se investisse tempo suficiente, poderia ir melhorando e talvez deixasse de suar das mãos antes de falar para quatro desconhecidos.
Auto-ajuda-me
Os especialistas chamam a este tipo de mentalidade — que os regens devem ter e eu orgulhosamente professo agora — de growth mindset (que por sua vez também pode ser aprendido e desenvolvido).
Claro que continuo com dúvidas, continuo a deixar para a última as coisas mais difíceis, continuo a ter receio de sair da minha zona de conforto. A novidade é que me esforço por contrariar esses impulsos.
Se isto parece auto-ajuda, é porque é um bocadinho. Nos últimos dois anos, também aprendi a não ter vergonha de recorrer a ela. Como escrevi na semana passada, tenho lido vários livros que cabem nessa etiqueta, ainda que no sentido mais lato. A maior parte até são sobre aprendizagem.
Peak, de Anders Ericsson, o psicólogo que cunhou o conceito de «prática deliberada»3 e lançou sem querer aquela história de que são necessárias dez mil horas para dominarmos uma matéria4.
Moonwalking with Einstein, de Joshua Foer, um jornalista que seguiu as ideias de Ericsson para vencer o Campeonato de Memória nos EUA, sem qualquer experiência.
Get Better at Anything, de Scott Young, que fez um curso inteiro do MIT em casa num espaço de apenas um ano, com os recursos disponíveis na Internet. Além de ter aprendido a falar várias línguas.
Range, de David Epstein, que vai contra algumas ideias de Ericsson, incluindo a de prática deliberada, advogando que a dispersão de interesses pode ser benéfica quando se quer ser o melhor (ou simplesmente melhor) numa determinada área (sobretudo se for menos dada à repetição de tarefas, como as actividades criativas).
Atirar-me de cabeça
Apesar de não ter conseguido tocar «I’m Confessin’», um belíssimo standard de jazz composto por Chris Smith e que conheço sobretudo da notável versão de Thelonious Monk, quero voltar a tocar piano ao vivo.
Mesmo que me engane outra vez, mesmo que bloqueie. Não é o fim do mundo, como já pude constatar. É suposto cair umas quantas vezes antes de se saber andar.
Para o ano, como referi na newsletter de Natal, quero tocar o «Fairytale of New York».
Uma pitada de auto-promoção
Aprender a aprender não foi a única coisa que tirei das incontáveis horas a jogar FM. Também fiz este pequeno vídeo a que ninguém ligou nenhuma, apesar de me ter dado algum trabalho e de gostar bastante dele.
Gareth! é um documentário fictício sobre um jogador de futebol que nunca existiu (a não ser no meu jogo) e a quem dei um destino trágico: Gareth Dorward.
(A narração está em inglês, mas dá para pôr legendas em português.)
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão é da Beatriz Marques Morais. Tenham uma boa semana. Até ao próximo domingo.
E ainda não o fiz. Aprendi foi a tocar o «Minueto em Sol Maior» de Christian Petzold, que toda a gente atribui erradamente a Bach. Curiosamente, Christian Petzold também é o nome de um dos melhores realizadores da actualidade.
Em An Alternative Reality: The Football Manager Documentary, que pode ser visto no YouTube, dá para perceber o nível de obsessão que alguns atingem.
A «prática deliberada» contrapõe-se à simples prática. O conceito explica porque é que alguém que pratica uma actividade há vários anos pode não mostrar grandes melhorias (antes pelo contrário). Para se aprender a sério, é preciso errar, treinar aquilo em que não se é bom, ter feedback mais ou menos imediato (e um treinador ou mentor), insistir, falhar, tentar de outra forma, falhar, tentar outra vez, fingindo que não é monumentalmente frustrante às vezes.
Malcolm Gladwell é que espalhou essa informação imprecisa em Outliers. O estudo de Ericsson referia-se a pianistas de elite. O número de horas precisas para atingir a mestria depende do grau de dificuldade daquilo que se está a aprender e da competição (numa área com poucos adversários é mais fácil ser o melhor), entre outras variáveis.
Nunca joguei FM mas o meu namorado joga e achou muita graça à minha leitura em voz alta. O documentário fictício é de ir às lágrimas, não estava à espera que o Gareth desaparecesse do nada, pobre da Catrin.
Também tive o vício muitos (demasiados) anos. Começou no CM98/99 (o melhor jogo de todos os tempos). Depois, percebi que um full time podia ser remunerado e gizei um plano para abandonar (mais um) vício: quando me reformasse dedicar-me-ia por inteiro a jogar FM. O certo é que a distância cultiva distância e hoje sonho com a reforma para ter tempo para ler tudo o que quero (e sou mais novo que tu). A piada do Seinfeld era qualquer coisa como: há mais gente com medo de falar em público que morrer, por isso num funeral há mais gente que preferia estar no caixão que a fazer o discurso fúnebre. É boa a pida, é péssima a incerteza que tenho sobre que lugar tomaria (o funeral tinha muita gente? a minha voz seria amplificada? quanto tempo durava o discurso? podia ir drogado? com que idade se colocava o dilema? entre outras)