No final de cada mês, escrevo sobre um filme, um disco, um livro (e mais qualquer coisa) que me fizeram companhia ultimamente. Podem ser recentes ou antigos. Desde que me tenham despertado a curiosidade e o interesse.
As Escolhas do Mês recaem sobre Nero Wolfe, os Steely Dan, uma das melhores adaptações de romances de John Le Carré e um podcast de que tenho gostado muito de ouvir (ao ponto de estar meio viciado).
Too Many Cooks/Champagne for One, de Rex Stout
Ainda li Perplexing Plots de David Bordwell antes de ele morrer. Como já escrevi noutra edição do Diga-se de Passagem, estava à espera de mais um livro sobre cinema — pelo título e pela capa, talvez um estudo acerca das experiências narrativas do cinema dos anos 40, sobretudo do film noir, à imagem de Reinventing Hollywood.
E saiu-me um tomo sobre literatura policial.
Não é que me tenha feito rogado. Aprendi bastante sobre um género de que gosto muito, mas do qual tenho um conhecimento relativamente reduzido — só conheço os autores mais famosos. A leitura de Perplexing Plots levou-me a ter muita vontade de ler mais dois.
Um deles foi Richard Stark, pseudónimo de Donald E. Westlake, inventor do ladrão Parker, protagonista de uma série de livros, alguns deles adaptados ao cinema, especialmente The Hunter, que deu origem a Point Blank, com Lee Marvin, e a Payback, com Mel Gibson (e vai haver nova versão de Shane Black em breve).
O outro, Rex Stout, o criador de Nero Wolfe, um detective encorpado e sedentário, que odeia abandonar a sua moradia em Nova Iorque, onde prefere ficar a cuidar das orquídeas e a inventar novos pratos para Fritz, o seu cozinheiro particular, experimentar.
Quando precisa de contactar o mundo exterior, Wolfe recorre ao seu fiel servidor, Archie Goodwin, que gosta de sair à rua e de se mexer e também de narrar as aventuras do seu patrão. E ainda bem que assim é. A escrita de Stout1 emula a maneira de ser de Goodwin, leve, divertida e espirituosa, em claro contraste com o arrogante e impaciente protagonista.
Como os livros de Nero Wolfe foram adaptados para a televisão no início deste milénio, tive dificuldade em ler este volume (oferecido por um amigo no passado Natal) — que agrupa duas histórias: Too Many Cooks e Champagne for One — sem pensar em Timothy Hutton, que interpreta Goodwin, e em Maury Chaykin, que fazia de Wolfe (morreu em 2010). Qualquer das escolhas parece perfeita, assim como assim.
A primeira história é passada no Sul dos Estados Unidos, e desagua inevitavelmente nas divisões raciais que aí se sentia antes dos anos 60. As personagens que a dupla encontra são abertamente racistas, usando livremente a palavra proibida quando se referem aos negros (será sempre muito discutível querer apagá-la de livros de outrora, mas custa lê-la).
Contudo, a visão de Stout, manifestada mais em Wolfe do que em Goodwin, não é essa. O escritor devolve dignidade e humanidade às personagens negras, dá-lhes uma verdadeira voz. Faz bem mais do que era sua «obrigação» em meados do século XX, época bastante permissiva à expressão do racismo.
Ainda assim, os editores do volume, para dissolverem quaisquer acusações de racismo, resolveram acrescentar um depoimento da cantora Lena Horne a elogiar os livros de Nero Wolfe. Apesar de vir meio a despropósito, apanha bem a qualidade da obra de Rex Stout. Que, de qualquer maneira, é mais patente em Champagne for One.
Os desfechos de qualquer das histórias não são particularmente elaborados, nem surpreendentes — estamos longe dos mistérios do quarto trancado —, o que não importa nada. O mais interessante nos livros de Nero Wolfe é a dinâmica entre as idiossincrasias e os apetites deste e as piadas e esperteza de Goodwin.
(Continuo a achar curioso que livros cheios de assassínios e mortes violentas funcionem como entretenimento leve para alguém, como eu, que tem um medo que se pela da morte.)
The Deadly Affair, de Sidney Lumet
Se calhar, era só eu que tinha a ideia de que Sidney Lumet era um realizador um pouco convencional, para não escrever mesmo académico. Ou seria ele que a veiculava? A verdade é que, apesar de o tentar esconder, Lumet gostava de ter estilo.
Mesmo sem ter uma marca autoral fortíssima que espalhava sobre todos os filmes, compunha um estilo específico para cada um deles. A maneira como descreve a escolha das lentes em 12 Angry Men (fechando cada vez mais o espaço para aqueles «homens em fúria»), no magnífico livro Making Movies (indispensável a cineastas e a cinéfilos), é esclarecedora quanto ao cuidado visual do realizador.
Desde os primeiros minutos salta à vista que The Deadly Affair é estiloso (ao contrário de Serpico ou de The Verdict, para citar dois dos seus melhores filmes). Visualmente, lembra The Limey, de Steve Soderbergh, talvez o melhor pastiche (ou homenagem, como lhe quiserem chamar) do cinema norte-americano dos anos 60 e 70. E talvez me lembrasse Point Blank, que menciono pela segunda vez nesta edição, se já o tivesse visto.
Apesar de ter sido filmado em 1966/67, tem tiques do cinema que havia de se afirmar na década seguinte no mundo anglo-saxónico: a montagem abrupta; a grande angular a distorcer as caras e os lugares; o à-vontade com que trata alguns assuntos «delicados».
Este último ponto fica demonstrado na relação entre George Smiley2, interpretado pelo magnífico James Mason, sempre cheio de mágoa, tristeza e compreensão das falhas da humanidade, e a mulher Ann, interpretada pela Monika de Ingmar Bergman, Harriet Andersson, devoradora e frágil.
É inesperadamente adulta, sem qualquer pudor (sexual ou outro), e é profundamente tocante, tão obsessiva como a canção de Astrud Gilberto e Quincy Jones que não pára de tocar no gira-discos.
Aquele casamento não faz qualquer sentido e ao mesmo tempo é totalmente compreensível. Nas versões de Alec Guinness e Gary Oldman de Smiley (na qual a mulher nem aparece) não atingem a profundidade desta.
Ponho-me a pensar se John Le Carré não roubou a Lumet (e ao argumentista Paul Dehn) uma das ideias principais de Tinker Tailor Soldier Spy (não quero dizer qual, para não desmanchar o prazer a quem ainda não leu ou viu).
Bem razão tinha o Rui Alves de Sousa quando se referiu a The Deadly Affair como um «belíssimo» filme.
Aquela sequência no teatro, quase no final, com Simone Signoret (a Casque d’Or, de Jacques Becker) e Maximilian Schell (com quem Mason contracenaria de novo em Cross of Iron), mostra toda a aptidão de Lumet para construir suspense. O último filme do realizador seria precisamente um thriller: Before the Devil Knows You’re Dead.
Aja, de Steely Dan
Classic Albums era (ou é) uma série de documentários televisivos sobre a produção de álbuns... clássicos. Faz lembrar outra série televisiva que eu via muito no início do milénio: Behind the Music da VH1 — biografias de várias bandas, cheias de mexericos e historietas.
Não sei se o episódio dedicado a Aja, dos Steely Dan, é exemplificativo, mas, apesar de haver muitas «cabeças falantes», Classic Albums é de outra ordem, mais sofisticada. Quando mais não seja por Fagen e Becker (que morreu em 2017, com 67 anos) serem músicos muito peculiares.
Só há relativamente pouco tempo é que tomei plena consciência da existência dos Steely Dan. Por uma questão de iniciais, confundi-os durante muito tempo com os Steelers Wheel, autores de «Stuck in the Middle with You», canção famosa por ser a banda sonora do corte da orelha de Reservoir Dogs, e que curiosamente também tinham uma dupla a comandar as operações: Joe Egan e Gerry Rafferty (que compôs a solo «Baker Street», um êxito tremendo fundado num solo de saxofone).
Ao contrário dos Steelers Wheel, os Dan (como são conhecidos pelos fãs) não eram propriamente uma banda. Depois de terem deixado de tocar ao vivo, os únicos membros que restaram foram Fagen e Becker. Quando gravavam os álbuns, chamavam os melhores instrumentistas de estúdio que conheciam e obrigavam-nos a tocar horas a fio.
Eles e o produtor Gary Katz não descansavam enquanto não atingissem o som perfeito. No tal episódio de Classic Albums, realizado em 1999 (apenas vinte e dois anos depois de o Aja ter sido lançado), Fagen e Becker (que, na altura, tinham cerca de cinquenta anos) divertem-se a ouvir os vários guitarristas a tentarem gravar o solo de «Peg» (que haveria de ser samplada pelos De La Soul em «Eye Know»), quase todos insuficientes a seus olhos.
Becker e Fagen, eles próprios excelentes músicos, não mostravam qualquer complacência com aqueles que não correspondiam ao que lhes era pedido, e reservavam a sua admiração para músicos do calibre do baterista Bernard Purdie, uma das «personagens» mais engraçadas do documentário3.
Contrariando a imagem dos músicos dos anos 70 — drogados e decadentes —, os Steely Dan pareciam funcionários públicos, que se fechavam no estúdio à procura do som ideal (não é por acaso que são uma das bandas preferidas dos audiófilos4). Também não eram bem do rock, existiam na intersecção deste com o jazz, um género que décadas depois seria denominado yacht rock (para grande desgosto de Fagen).
Ainda conheço mal a discografia dos Steely Dan, embora me tenha rendido aos álbuns que ouvi: este Aja — que além de «Peg» tem canções óptimas: «Deacon Blues» e «Black Cow» e «Josie» (destaques de Classic Albums) —, mas também o derradeiro Gaucho, e ainda The Nightfly, disco a solo de Fagen (cuja capa é fabulosa).
Heroes & Humans of Football, de Simon Kuper e Mehreen Khan
Descobri este podcast quando alguém referiu os dois episódios sobre José Mourinho antes de eu ter desistido de frequentar o Twitter. Talvez tenha sido Jonathan Wilson, o autor de Inverting the Pyramid, o livro que li mais vezes na vida, a par de Wuthering Heights e Alexandra Alpha.
Ao contrário do que vem sendo cada vez mais habitual, Heroes & Humans of Football não é um podcast de entrevistas, embora use outro formato muito em voga: a conversa entre dois apresentadores5.
Neste caso, são dois jornalistas que se encontraram provavelmente na redacção do Financial Times, para o qual Simon Kuper ainda escreve e onde Mehreen Khan costumava trabalhar.
Embora se debruce sobre outros assuntos, Kuper tem pelo menos três livros à volta do futebol: Football Against the Enemy, Soccernomics e Barcelona Complex. Este último é um óptimo estudo sobre as virtudes e os defeitos de um dos maiores clubes do mundo ser gerido como uma cooperativa da burguesia catalã.
Pelo que percebo, Kahn não escreve sobre futebol — especializou-se na área financeira —, mas é uma adepta fanática do Chelsea e interessa-se pelo futebol inglês de quando era adolescente, altura em que viu chegar Mourinho para revolucionar a Premier League, controlada por Arsène Wenger e, sobretudo, Alex Ferguson.
De resto, o português, o francês e o escocês são alvos preferenciais da veia narrativa de Kuper e Khan. Ouvir Heroes & Humans of Football é como ler não-ficção da boa, aquela que não se resume à biografia, que tem gosto de contar uma boa história.
Claro que há dimensão nostálgica no meu interesse por estas pequenas narrativas construídas com a estrutura clássica da ascensão e queda (daí os dois episódios). Lembro-me bem de quando o Manchester United foi campeão pela primeira vez com Alex Ferguson, ou de quando Arsène Wenger chegou a um Arsenal cinzento e muito pouco continental. Ainda mais de quando Mourinho, feito pavão, declarou que era o «special one».
O futebol já não é como naquele tempo, apesar de Ferguson e Wenger se terem reformado há relativamente pouco tempo (um «relativamente» cada vez menos relativo) e Mourinho ainda ande por aí (cada vez mais fantasma de si próprio).
E mesmo alguém como Pep Guardiola — que provavelmente ainda é o melhor treinador do mundo — carrega atrás de si toda uma maneira de ver o futebol que se não começa com Cruyff sedimenta-se à volta da sua figura. E, de qualquer maneira, recordo-me bem de o ver jogar na Dream Team do Barcelona dos anos 90.
Uma mixtape à antiga
Esta compilação é como se fosse gravada numa daquelas cassetes virgens de 60 minutos: tem lado A, lado B e não pode exceder uma hora.
A mixtape de Fevereiro não tem propriamente tema. Apeteceu-me organizar um conjunto de canções que descobri ou reencontrei nos últimos tempos. Chamei-lhe Música para ouvir em casa até porque é possível que chova como podia ter chamado outra coisa (segundo o IPMA, nem deve chover hoje).
Fica aquém dos cinquenta minutos. Teria dado para enfiar mais uma ou duas canções. Se a compilação fosse gravada numa cassete de 60 minutos (não caberia numa cassete de 45), ficaria ali bastante espaço no final dos dois lados. Imaginem-se a rebobinar um bom pedaço da fita magnética quando virassem a cassete do lado A para o lado B (e vice-versa).
Eis a lista das canções, com uma breve explicação para a sua inclusão:
«The Goodbye Look», de Donald Fagen, por causa do meu disco de Fevereiro e porque é óptima.
«Week-end à Rome», de Étienne Daho, por causa da minha recente e duradoura obsessão pelo músico francês.
«Diana», dos Prefab Sprout, porque sempre adorei esta canção (às letras de Paddy McAloon, ligo) e porque gostar dos Sprout ajudou-me a gostar dos Steely Dan.
«To Cry About», de Mary Margaret O’Hara, porque ouvi o álbum Miss America há não sei quanto tempo e agora voltei a ele por causa do Nick Hornby (talvez a minha maior influência para fazer mixtapes).
«Bluebeard», porque de vez em quando ouço melhor uma canção dos Cocteau Twins e isso faz-me voltar a apaixonar-me perdidamente pela banda de Liz Fraser e Robin Guthrie.
«Lit Negative», de MJ Guider, porque a Beatriz me disse que vinha(m) cá e que lhe fazia(m) lembrar Grouper [e realmente faz(em)].
«a wasp appears», dos They Are Gutting a Body of Water, porque os Diiv falaram deles como bom exemplo do novo shoegaze que se faz por aí.
«Love Buzz», dos Nirvana, porque quando o José Marmeleira falou do Bleach recordou-me o quanto adorava esta canção e a linha do baixo.
«The Fire», dos The Sound, porque o Nuno Nabo, um dos leitores mais atentos aqui do Diga-se, me fez perceber que não tinha dado a devida atenção a From the Lion’s Mouth.
«State Trooper», de Bruce Springsteen, porque, apesar de não adorar o músico de New Jersey, esta canção é mesmo muito boa (obrigado, José, por ma trazeres).
«Lowdown», de Boz Scaggs, porque da primeira vez que a ouvi achei-a super cool (e é, mesmo depois de a ouvir mais vezes) e porque o nome do cantor é inacreditável (no sentido de se não acreditar que alguém tenha aquele nome).
«Jing Jing», de Shokichi Kina, porque achei muita piada à canção quando revi Blue in the Face, de Wayne Wang e Paul Auster. O álbum de Kina no qual «Jing Jing» aparece foi lançado pela Luaka Bop de David Byrne.
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão é da Beatriz Marques Morais.
No domingo que vem, volto às crónicas. Se não mudar de ideias, o tema andará à volta da falibilidade da memória e da fragilidade dos arquivos (físicos e digitais).
Tenham uma boa semana. Até ao próximo Diga-se de Passagem.
Antes de se dedicar ao romance policial, Rex Stout tentou a literatura mais «séria», na veia pós-modernista de William Faulkner. O resultado teve sucesso relativo — provavelmente o autor não seria recordado hoje não fosse por Nero Wolfe.
Que aqui se chama Charles Dobbs: quem produziu The Spy Who Came In from the Cold, com Richard Burton, ficou com os direitos do nome, que portanto neste filme não pôde ser usado.
Em qualquer profissão que exige génio e cumplicidade (músicos, futebolistas), só há respeito por quem é tão bom ou melhor do que nós.
O Expresso chegou a ter um espaço de crítica a aparelhagens, escrito por um audiófilo de que já não lembro o nome. À época, achava meio ridículo, a antítese da verdadeira crítica de música. Agora até acho graça, tanto ao conceito quanto ao cuidado que certos músicos punham na produção dos seus discos.
Há uns anos seguia o podcast de Gary Lineker e Danny Baker, humorista, radialista e apresentador de televisão. Chamava-se Behind Close Doors. Um dos temas preferidos da dupla eram as histórias mirabolantes sobre Paul Gascoigne, do qual ambos são amigos.
Adorei ler isto. E agora estou a apreciar a mixtape mesmo que não esteja a chover.