Sinto que na newsletter de 11 de Agosto sobre o MOR modernista — a música que se situa no centro da cultura popular, mas é atingida pelas suas margens (e talvez nasça da fricção entre esses dois pólos) — ficou muito por dizer. Que não cheguei a lado nenhum. E o assunto tem pano para várias mangas, como quem diz: pode ir em diversas direcções. Uma delas é a história de uma figura muito peculiar, que começou investida na música mais radical e experimental das últimas décadas do século passado e acabou a fazer (e a ajudar a fazer) a pop mais sofisticada e elegante da transição entre milénios.
Arthur Morgan Lindsay nasceu nos Estados Unidos da América, na Virgínia, em 1953. Os pais era missionários e foram viver para o Brasil quando ele era pequeno, mais precisamente para o Pernambuco. Arto, o petit nom por que é conhecido ainda hoje, cresceu a falar português e a ouvir música brasileira, sobretudo o Tropicalismo de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e os Mutantes, que enfeitiçava o Brasil em finais dos anos 60 (e é mais um belo exemplo de confusão entre experimentalismo e acessibilidade). Uma influência que se foi tornando cada vez mais clara no percurso artístico de Lindsay.
Quando despontou no meio da efervescente cena artística nova-iorquina de finais dos anos 70, Arto tocava guitarra eléctrica. Mal, muito mal. Como se esta estivesse estragada. Ou como se estivesse a tentar estragá-la da maneira mais barulhenta, desagradável e irritante possível. A verdade é que, por muito interessantes e vanguardistas que tenham sido, os DNA — que formou com Robin Crutchfield, Ikue Mori e Tim Wright — testam a paciência do ouvinte, operando no limite do suportável. Fosse como fosse, seriam «descobertos» por Brian Eno quando andou por Nova Iorque a caçar e a coleccionar as bandas mais esquisitas da cidade, projecto que culminou na compilação No New York, para a qual a banda de Lindsay participou com quatro… canções (não são tanto canções como anti-canções).
A presença em No New York contribuiu para que os DNA se tornassem das bandas mais importantes da cena musical que ficou conhecida como No Wave (por contraponto com a New Wave, bem mais optimista, luminosa, ou, pondo em palavras simples, mais musical), da qual também sairam os Sonic Youth, o recém-falecido James Chance e os seus Contortions, os Del-Byzanteens do futuro realizador Jim Jarmusch, os Gray de Jean-Michel Basquiat e Vicente Gallo (que não lançaram qualquer álbum).1
Os Lounge Lizards de John Lurie (protagonista de Stranger than Paradise, do citado Jim Jarmusch) eram outra das bandas do circuito alternativa de Nova Iorque. Lurie, um saxofonista dotado, formou os Lizards com o irmão Evan, de modo a praticarem uma espécie de jazz mutante, falso, esquizóide. Para tal, convidaram a guitarra estridente e abrasiva de Arto Lindsay (que nos álbuns subsequentes seria substituída pela de Marc Ribot, mais melodiosa). O guitarrista tocaria ainda um jazz mais a sério (ou mais sério) com John Zorn e participaria em álbuns de Laurie Anderson, David Byrne e Ryuchi Sakamoto, a nata da música nova-iorquina dos anos 80 e 90.
A viagem de Lindsay para o centro da cultura popular fez-se pela banda que fundou com Peter Scherer, os Ambitious Lovers. Os álbuns do duo preconizam o que seria a partir daí a sua música, incluindo os discos a solo: cosmopolita, aberta ao mundo (principalmente à música brasileira), requintada, dançável, alegre, lúdica, na qual a guitarra «mutante» aparece domada, pontuando a produção polida, muito «anos 80». Os Ambitious Lovers são a primeira aproximação de Lindsay à pop sofisticada (ao MOR modernista), que conjugava com o funk e o hip-hop ainda incipiente. E em algumas das canções, Arto experimentava cantar em português, não se safando nada mal.2
No entanto, a faceta mais interessante da carreira de Arto Lindsay é muito provavelmente a de produtor. Lindsay é como que o Eno da Música Popular Brasileira dos anos 90: está por todo o lado. Seja no Estrangeiro do «conterrâneo» Caetano Veloso (que à altura também vivia em Nova Iorque), seja no óptimo Sol na Cara do sobrevalorizadíssimo Vinicius Cantuária (o segredo mais bem guardado da música brasileira?), outro «nova-iorquino». Para os dois aperfeiçoaria a tal produção muito «anos 80», polida, sintética, à base de sintetizadores e batidas ecoantes, a roçar o mau gosto, com pontos de contacto com a de Thomas Dolby para os Prefab Sprout. Depois, quase se pode dizer que criou os Tribalistas (a resposta à Tropicália do início dos anos zero), ao ter produzido álbuns individuais de Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e sobretudo Marisa Monte. No álbum Verde, Anil, amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão desta última, lançado em 1994, a cantora faz uma versão de «Pale Blue Eyes» dos Velvet Underground e tem como convidada Laurie Anderson, anunciando a futura relação desta com Lou Reed (será que poderemos atribuir a responsabilidade deste «encontro» a Arto?).
Voltando à imagem da newsletter anterior, Arto Lindsay (e a música que produziu) seria a banda-sonora perfeita para a tal mulher imaginária de meia-idade, intelectual dos anos 90, que lia João Lisboa e Ricardo Saló aos sábados de manhã, para assim se manter a par do que mais interessante se fazia na música, e à tarde ia ao Quarteto ver o último filme de Woody Allen. É uma pop refinada, entre a cosmopolita Nova Iorque e as raízes africanas e baianas da Tropicália. O que lhe falta em nervo, em carne e osso, sobra-lhe em inteligência, em risco, em classe. Um primor.
Uma pitada de auto-promoção
Para comemorar os doze anos do À pala de Walsh3, participei num pequeno jogo com os actuais editores do site (que abandonei faz agora oito anos). A rubrica chama-se Vai-e-Vem e é uma espécie de cadáver esquisito feito com imagens. Este partiu de um fotograma escolhido por mim: os pés de Natalie Wood em Love with the Proper Stranger de Robert Mulligan.
Há uns vinte anos, a Soul Jazz editou a notável colectânea New York Noise, para quem quiser ouvir as canções mais dançáveis da época.
Continua a cantar em português em canções como «Pele de Perto» ou «O Nome Dela».
A primeira publicação do À pala de Walsh foi a 15 de Julho de 2012.