Tango interrompido
Porque é que Gabrielle Anwar, a actriz que dançou com Al Pacino, nunca foi uma estrela de cinema?
Esta semana volto às crónicas. O tema é Gabrielle Anwar, uma actriz inglesa de que poucos se recordarão e ainda menos reconhecerão o nome.
Vi-a pela primeira vez quando tinha uns doze anos e pareceu-me lindíssima, a dançar um tango com Al Pacino em Scent of a Woman.
Anwar estava destinada ao estrelato, mas por uma razão ou por outra nunca o atingiu. Vou tentar perceber porquê, especulando um pouco, adivinhando outro tanto.
Há uns tempos apeteceu-me rever um filme. Já nem me lembrava bem do título, sabia que era com o Michael J. Fox e que este fazia de concierge de um hotel de luxo em Nova Iorque1 — aliás, foi assim que aprendi o que queria dizer concierge (nome pomposo para recepcionista).
Vi For Love or Money — que o Imdb insiste ter-se chamado Por Amor ou Por Dinheiro em Portugal, do que não estou nada convencido — com a minha mãe. Tenho quase a certeza de que foi numa das salas pequenas das Amoreiras, onde íamos aos fins-de-semana. Deve ter sido uma sexta-feira à noite. O meu pai estaria fora numa viagem de negócios. Se não, também teria ido.
A jovem que dançara o tango com Al Pacino em Scent of a Woman também entrava. Fazia sentido juntarem-na a Michael J. Fox, depois das viagens no tempo e antes da doença de Parkinson: ela era a «next big thing», os dois só poderiam ir longe.
Aos doze, treze anos, acreditava piamente estar a assistir ao início de uma carreira fulgurante. Quem tinha roubado uma cena a Al Pacino no filme pelo qual ele ganhou o Óscar só poderia ser bem-sucedida. Ela tinha tudo: beleza (era das mulheres mais bonitas que eu já tinha visto), talento (uma naturalidade difícil de fingir) e aquela «qualquer coisa» que faz os olhos (e a câmara de filmar) seguir determinada pessoa em vez de outra.
Estava bem enganado. A sua ascensão depressa resultou em esquecimento. Aos dias de hoje, é sobretudo recordada por essa dança e pouco mais.
Mesmo quem se lembra bem da cena (e serão alguns) não saberá como se chama a actriz. Eu sei: Gabrielle Anwar.
Perfume de mulher
Tenho ideia de ter visto Scent of a Woman, de Martin Brest, nas mesmas Amoreiras, poucos meses antes. Também com a minha mãe, só que desta vez à tarde. Estaria de férias? O meu pai estaria a trabalhar? Seria fim-de-semana?
Senti-me contente por estar a ver um filme para adultos, sem desenhos animados (apesar de o indivíduo gritar constantemente «Hooah!»2, como um vilão engraçado da Disney), e de conseguir seguir a história, entender as personagens (aos olhos de agora, o filme parece-me bem menos sofisticado e inteligente).
Identifiquei-me com a timidez de Chris O’Donnell e fiquei estarrecido com o actor-monumento. Al Pacino. A violência prestes a explodir por dá cá aquela palha, a voz rouca e autoritária, os berros que faziam saltar toda a gente (incluindo o próprio), a cegueira de olhos brilhantes, a persona que já nenhum filme conseguia abranger.
A Academia, com medo de que passasse o resto da vida a fazer over-acting, deu-lhe finalmente o Óscar de Melhor Actor. Não deixava de ser curioso que o intérprete de Michael Corleone, obra-prima de contenção, fosse premiado por deixar extravasar toda a energia reprimida nos seus grandes papéis (os dois primeiros Godfather, Serpico, Dog Day Afternoon). Naquela tarde, nas Amoreiras, Al Pacino passou a ser o meu actor preferido. Nunca deixou de o ser (quer dizer, é entre ele e Cary Grant).
Além de representar a consagração de Pacino (e de nos apresentar Philip Seymour Hoffman, muito louro e insuportável), Scent of a Woman é conhecido pela cena do tango. Arrisco escrever que hoje em dia a sequência será mais famosa do que o próprio filme.
A meio do fim-de-semana que Chris O’Donnell é obrigado a passar com Pacino em Nova Iorque (coitado!), os dois vão a um salão de chá (ou algo do género). Al Pacino é um ex-militar cego, mas tem os outros sentidos bastante apurados. Às tantas, cheira-lhe a mulher bonita (e a sabonete Ogleby Sisters). Senta-se à sua mesa, convida-a a dançar um tango de Carlos Gardel.
Ela aceita, a medo. Aos poucos, deixa-se conquistar pelo charme dele. E conquista-nos a todos.
Naquele instante, Gabrielle Anwar era uma estrela. Ninguém conseguia tirar os olhos dela, apesar de estar nos braços de Al Pacino. O mundo rendia-se, prostrava-se a seus pés.
O cadáver da comédia romântica
Ao rever For Love or Money (alguém se lembra do título em Portugal?), realizado por Barry Sonnenfeld (ex-director de fotografia dos irmãos Coen, que acabara de ter um grande sucesso com The Addams Family), fiquei bastante desiludido.
É uma tentativa fracassado de reanimar um género — a comédia romântica clássica —, que à data, princípios dos anos 90, estava praticamente moribunda. O argumento não é desengraçado, mas é muito desequilibrado.
A comédia romântica há-de ser dos poucos géneros cinematográficos em que há paridade entre homem e mulher. Neste caso, nem por isso. J. Fox é claramente o protagonista, que sonha ter o seu próprio hotel em Manhattan, mas se apaixona pela amante do investidor — daí o dilema patente no título.
Gabrielle Anwar — indicada pela revista People como uma das 50 pessoas mais bonitas do mundo — não passa de objecto de desejo. Não se percebem as suas intenções. As atitudes, aleatórias, servem apenas para fazer mover a acção. Não há qualquer vontade de construir uma personagem. A actriz está completamente perdida, desconfortável, sem acertar no tom, aos papéis.
Ainda assim, Anwar continuou a ser escolhida para filmes de grande orçamento. De seguida, foi a Rainha Anna da versão de Os Três Mosqueteiros dos anos 90, muito apatetada — o Cardeal Richelieu era interpretado pelo histriónico Tim Curry. O filme foi um sucesso, a canção que originou, interpretada por Bryan Adams, Sting e Rod Stewart, ainda mais.
Mas este The Three Musketeers não era grande coisa e Gabrielle nem sequer era Constance para o D’Artaganan de Chris O’Donnell — os dois actores pareciam unidos pela benção de Al Pacino. Mas estariam ainda destinados ao sucesso?
Se O’Donnell não resistiu aos Batman de Joel Schumacher, sobretudo ao descalabro de Batman & Robin, no qual fazia de parceiro do justiceiro, Gabrielle foi-se perdendo em papéis indiferentes.
Pouco mais do que um bibelot
Estou a deixar propositadamente de fora Body Snatchers, de Abel Ferrara, que Anwar protagoniza com brio. A terceira adaptação do livro de Jack Finney é como um belo filme de John Carpenter, ao osso, preciso, sem excrescências. É pena que Ferrara não tenha voltado a realizar filmes de estúdio.
Mas até em Body Snatchers Gabrielle Anwar é uma intérprete diáfana, vaporosa. Às vezes, parece pouco convencida do que está a fazer, pouco convincente. Uma presença meio ausente. Transparente, embora luminosa.
Talvez se os tempos fossem outros, numa Hollywood mais clássica, tivesse medrado. Tinha a qualidade de algumas estrelas de antigamente, das quais Jorge Silva Melo fala em «E a Vida Que Nos Filmes Deixaram», excelente texto sobre a arte da representação, escrito para um ciclo da Fundação Gulbenkian e publicado em Deixar a Vida.
Só que não teve essa sorte. O seu último «grande» papel foi em Things To Do In Denver When You’re Dead, de Gary Fleder (escrito pelo mesmo Scott Rosenberg do bastante melhor Beautiful Girls). Um daqueles filmes que fez muita gente queixar-se das imitações de Tarantino: chico-esperto, desnecessariamente violento, com diálogos tão espirituosos que dá vontade de dar uma estalada em quem os profere3.
A actriz não tem hipóteses nenhumas no meio da trama estúpida e complicada. Nem Andy Garcia, que trabalha tão bem os trejeitos, os maneirismos, as expressões faciais (até os berros: deve-lhe ter ficado dos tempos da terceira parte d’O Padrinho, quando conviveu com Al Pacino), consegue safar-se, apesar dos seus esforços.
E ele bem tenta dar vida à personagem de Gabrielle Anwar, que praticamente não tem querer e, uma vez mais, só serve para ser olhada de longe. Mas nem o argumento nem a realização o ajudam.
Gabrielle era cada vez mais uma imagem, só uma imagem. Nessa altura, ainda participou no teledisco de «Into Great Wide Open», de Tom Petty, uma super produção com Johnny Depp e Faye Dunaway, realizada por Julien Temple (dos documentários sobre punk e os Sex Pistols). Já havia participado no vídeo de «Pretty Little Head» de Paul McCartney, antes de abandonar Inglaterra atrás do marido Craig Sheffer, um actor norte-americano.
Nos primeiros anos da década de 90, houve quem chegasse ao estrelato através dos vídeos de música. Quem não se lembra de Alicia Silverstone4 e Liv Tyler em «Crazy» dos Aerosmith?
Mas em «Into Great Wide Open», Gabrielle Anwar tinha um papel menor, desengraçado. Era a namorada deixada por Johnny Depp no caminho mefistofélico para a fama. Não deixava de ser um bibelot.
O que é que aconteceu a Gabrielle Anwar?
A culpa do apagamento de Gabrielle Anwar não pode ser totalmente alheia à própria. Não se pode atribuir tudo aos maus argumentos e a realizadores incompetentes.
Será que teve medo do sucesso? Foi one-hit wonder, actriz de uma cena só?
Houve outros que aproveitaram bem o destaque numa pequena cena de filme grande. Brad Pitt é bom um exemplo. Foi basicamente um figurante em Thelma & Louise, mas nunca mais parou (apesar de ter feito muitos filmes mauzitos nos primeiros tempos). A Charlize Theron, «bastou-lhe» fazer um anúncio.
Julia Roberts — que chamara a atenção em Mystic Pizza, um pequeno filme que não vi nas Amoreiras, mas sim no D. Pedro III em Queluz (onde também assisti a The Rocketeer, belo filme de aventuras com Jennifer Connelly, outra paixão desses tempos) — agarrou a oportunidade de Pretty Woman com unhas e dentes.
A comparação será injusta: Roberts é das grandes actrizes dos últimos quarenta anos (bastante subvalorizada até, apesar do Óscar por Erin Brockovich), mas porque é que Anwar nunca procurou outros filmes, ou que lhe melhorassem as falas e as personagens?
Não se pode afirmar que não tivesse talento algum. A cena com Al Pacino prova o contrário. É difícil transmitir aquela graciosidade meio nervosa, fingir a naturalidade do sorriso, o prazer com que se entrega à dança. Não é para todos, mesmo que tenham alguém como Pacino ao lado.
Pelo que percebo, Gabrielle Anwar encontrou poiso na televisão, na série Burn Notice, que nunca vi, mas que tem o melhor canastrão da história, Bruce Campbell, pelo que não pode ser assim tão má.
Entretanto, a série acabou e ela foi deixando de trabalhar. Talvez não precise, talvez não lhe ofereçam nada de interessante. Aos 54 anos, já não é tão bonita, por culpa de operações plásticas exageradas — os lábios são demasiados grossos, a testa ficou inchada.
Numa entrevista recente, falou da bipolaridade, dos abusos sexuais que sofreu enquanto criança e adolescente, de ter fugido da casa de família, de ter encontrado na representação uma salvação possível.
A entrevistadora, essa, está mais interessada em perguntar-lhe sobre Scent of a Woman. Por muito cruel que possa ser.
Uma sugestão
Como havia anunciado há semanas, o ciclo «Mestres Japoneses Desconhecidos» está agora a decorrer em Lisboa e noutros pontos do país.
Só ainda vi uma das três obras que o compõem: Haha no omokage/Imagem de Uma Mãe, de Hiroshi Shimizu, que vale mais que todos os outros filmes em exibição em Portugal neste momento.
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Como Kiri no Oto/O Som do Nevoeiro (incluído na edição anterior dos «Mestres»), do mesmo realizador, Imagem de Uma Mãe é um melodrama depurado e elegante, que na sua aparente singeleza esconde uma violência dolorosa.
Em O Som do Nevoeiro era o luto de um grande amor. Imagem de Uma Mãe debruça-se sobre o luto materno. Ninguém quer que o miúdo sinta a morte da mãe, piorando a situação de toda a gente.
Quem puder, faça um favor a si mesmo: veja este filme!
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão é da Beatriz Marques Morais. Tenham uma boa semana. Até ao próximo domingo.
É possível que me tenha apaixonado pela cidade por causa deste filme. Ou então terá sido por causa de Home Alone 2, que juro que vi no Verão.
Em português, talvez escrevêssemos «Uá», embora se perca o eco daquele «á» que ressoa por muito tempo na boca de Al Pacino.
O mesmo Barry Sonnenfeld de For Love or Money faria uma versão bem melhor do pseudo-Tarantino: Get Shorty, com um John Travolta em estado de graça depois de Pulp Fiction. O papel para a «leading lady» nem se compara e René Russo é absolutamente extraordinária.
Recomendo também que veja o filme inspirado (no título apenas) pela música de Warren Zevon. Things to do in Denver when your dead, onde contracena com actores pouco conhecidos como Andy Garcia, Christopher Lloyd, Christopher Walken, Treat Williams (na versão "bad Guy") entre outros.
Dançarino! Lembro-me sempre dessa cena, mas era já mais velho do que você na altura do lançamento desse filme. Não me lembrava da presença do Hoffman, um grande ator com um triste fim. Assisti ainda ontem ao último filme que ele fez, "O Homem Mais Procurado", baseado no livro homônimo do John Le Carré.