No Domingo de Páscoa, não é suposto estar-se a trabalhar. É para nos estarmos a empanturrar de borregos, amêndoas, ovos de chocolate e outros doces.
De qualquer maneira, penso que ler o Diga-se de Passagem não vai contra qualquer regra. Tanto mais que esta crónica é dedicada a um filme que costumava passar todos os anos na televisão portuguesa (e na de muitos outros países que celebram a Páscoa) — pelo que vejo, este fim-de-semana não deu nem vai dar em nenhum canal generalista.
Antes de a minha avó paterna vir para um lar em Lisboa, íamos todas as Páscoas a Portalegre, sua terra natal (e da família do meu pai). Costumávamos ir à quinta (com o saco do Expresso, que saía um dia antes) e celebrávamos a data no sábado, porque no domingo tínhamos de regressar a casa e o trânsito causava apreensão, mas ainda ficávamos dois ou três dias no Alentejo.
Deve ter sido numa dessas idas a Portalegre que vi o meu primeiro «filme preferido»: The Ten Commandments, de Cecil B. DeMille. Que estava a dar na televisão da casa da minha tia Laurinda (como de costume na Páscoa). Não terei visto o filme todo, mas nessa época a minha mãe gravava tudo o que passava na televisão em VHS (tínhamos centenas de cassetes), pelo que pude ver o filme depois.
Incontáveis vezes. Tornou-se quase uma obsessão. Não conseguia parar de o ver.
O meu fascínio pode parecer incompreensível. Para mais, devia ter uns oito ou nove anos. Não é que me fizesse impressão ser antigo — já gostava dos filmes de piratas do Errol Flynn e nessa altura nós todos habituámo-nos a ver obras de décadas passadas na televisão —, mas não deixa de ser estranho prender-me assim a um filme bíblico dos anos 501.
A resposta é simples. O bastão de Moisés a transformar o Nilo em sangue e a terrível noite da peste verde que mata os primogénitos egípcios foram razões mais do que suficientes para me apaixonar por The Ten Commandments2.
Defeitos especiais
Em Estilo Transcendental no Cinema — Ozu, Bresson, Dreyer (editado pela Beatriz nas Edições 70), o futuro argumentista e realizador Paul Schrader vitupera contra os efeitos especiais dos filmes bíblicos, em particular o meu The Ten Commandments (que passarei a chamar Os Dez Mandamentos, porque era assim que o conhecia).
No seu entender, era impossível representar o sagrado através da manipulação de imagens. Já li o livro há uns tempos, mas ficou-me a ideia de que Schrader, além de considerá-lo distante de qualquer religiosidade séria, achava o filme de De Mille de intenso mau gosto.
Não estava sozinho: John Ford, John Huston e William Wellman proferiram, à vez, palavras duríssimas em relação à obra do realizador e aos seus filmes religiosos: oco, espalhafatoso, «a coisa mais horrível já vista». David O. Selznick, embora também fosse dado à megalomania e ao espectáculo cinematográfico, torcia-lhe o nariz.
Em contrapartida, Salvador Dalí considerou-o um dos grandes surrealistas americanos, a par de Walt Disney e dos irmãos Marx. E a geração de Scorsese e Spielberg soube homenageá-lo da melhor maneira — Scorsese, como bom cinéfilo, apreciando o festim visual de Os Dez Mandamentos; Spielberg, dos últimos grandes cineastas clássicos, inspirou-se com certeza nos efeitos especiais e no deus vingativo de Moisés no final de Raiders of the Lost Ark, com as caras dos nazis a derreterem depois de abrirem a Arca da Aliança3.
No fundo, todos, apreciadores e detractores, terão razão. Os Dez Mandamentos pode ser um disparate, mas é um disparate deslumbrante.
Para começar, é absolutamente sensacionalista, uma versão Correio da Manhã da Bíblia. Só que, ao contrário do jornalismo, o cinema medra no excesso, na ampliação do sentimentalismo e de todas as sensações, da sensualidade lúbrica.
Apesar da suposta espiritualidade da empreitada, a primeira metade de Os Dez Mandamentos é basicamente sobre sexo. Não deve haver personagem masculina que não apareça de tronco nu (bastante musculada); as mulheres, por seu lado, cobrem-se de vestidos coleantes e diáfanos. Às tantas, quando milhares de mãos ajudam a erigir um obelisco em honra do faraó, perguntamo-nos se não será uma metáfora visual.
Os Dez Mandamentos é uma super-produção à antiga, com (literalmente) milhares de figurantes. Não chega às quatro horas por muito pouco e tem direito a intervalo, abertura e uma apresentação do realizador4. É daqueles filmes que davam sentido às aveludadas cortinas que tapavam os grandes ecrãs de antigamente — mas que não perdia força no horroroso formato pan & scan usado na televisão.
A minha catequese foi o cinema
Eu nem sequer sou baptizado. Nunca frequentei catequeses, embora tenha tido aulas de Religião e Moral, cujo professor uma vez me acusou de gozar com o sofrimento de Jesus por me estar rir de qualquer coisa não-relacionada que um amigo meu tinha dito.
A minha avó materna bem queria que me baptizassem. Ainda tentou exercer a sua influência sobre mim, ensinou-me a rezar o Pai Nosso e a Avé Maria, dos quais ainda sei alguns versos. Mas nada feito.
Também nunca tive aversão pela religião. Talvez por nunca me ter sido imposta — posso contar pelos dedos das mãos as vezes que fui à missa (em casamentos e funerais). Na verdade, até tenho algum interesse pela Igreja Católica — é uma instituição, no mínimo, curiosa. E adorava filmes bíblicos quando era miúdo.
Além de Os Dez Mandamentos, via com regularidade outros dois:
Quo Vadis, de Mervyn Le Roy, com o Nero de Peter Ustinov a deitar fogo a Roma e Deborah Kerr a desenhar peixinhos na terra e o forcado português Nuno Salvação Barreto a pegar um touro na arena do Coliseu de Roma (ou assim mo venderam).
Ben-Hur, de William Wyler, uma versão mais progressista do «filme da Páscoa», também com Charlton Heston5. Wyler é (ou era) muito mais considerado do que DeMille e o filme foi escrito, entre outros, por Gore Vidal, que até quis dar um toque homoerótico à relação de Ben-Hur com o Messala de Stephen Boyd (sem que Heston soubesse).
Mas a verdade é que são longos e entediantes, sobretudo o segundo.
Prefiro-lhes, por exemplo, Samson and Delilah, também de DeMille, com Victor Mature e Hedy Lamarr nos papéis titulares, que começa precisamente com a criação do Mundo, envolto em fumos e cores. Tal como a Os Dez Mandamentos, ninguém o pode acusar de ser aborrecido.
Há um lado vulgar, quase reles (no sentido de cheap, trashy) nos filmes bíblicos de DeMille. Apesar dos planos filmados no Egipto no filme sobre Moisés (por uma segunda equipa, provavelmente), os actores principais não devem ter abandonado o estúdio em Hollywood — quando estão à frente de uma vista espectacular, com pirâmides e centenas de escravos a trabalhar, esta é apenas uma projecção. E nota-se6.
Os vulgar auteurists deviam pelar-se pelo cinema de Cecil B. DeMille. Não sei se o fazem — John Waters, o mais vulgar dos cineastas norte-americanos, fez um trocadilho com o nome do realizador no seu Cecil B. Demented.
O certo é que DeMille ficou para a posteridade devido aos pedidos de Gloria Swanson para que filmasse o seu grande plano em Sunset Boulevard, de Billy Wilder. É triste que um realizador do seu calibre seja mais conhecido pelo «I’m ready for my close-up»7 do que por qualquer dos seus filmes.
Mensagens dos leitores
Ao ler esta edição do Diga-se de Passagem, o António Tadeia lembrou-se de «Charlton Heston», uma estranhíssima canção de uma banda de que eu nunca tinha ouvido falar: os Stump (segundo a Wikipedia, são uma mistura de Captain Beefheart e The Fall).
A letra da canção é basicamente o enredo de Os Dez Mandamentos, contado em tom paródico. No entanto, o mais esdrúxulo é a parte instrumental, cuja base é um sample de rãs (ou sapos; nunca sei qual a diferença) a coaxar.
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão é da Beatriz Marques Morais.
No domingo que vem, o último do mês, é hora das minhas Escolhas do Mês.
Tenham uma boa semana. Até ao próximo Diga-se de Passagem.
Fiz contas e fiquei deprimido. The Ten Commandments, de 1956, teria pouco mais de trinta anos nessa época. Agora tem quase setenta.
Também tive uma paixoneta pela Nerfretiri de Anne Baxter. Hoje em dia, Yvonne de Carlo, a pastora com quem Moisés casa antes de se tornar num fanático (não sou eu que o digo, é ela), parece-me bem mais bonita.
Spielberg homenageia DeMille explicitamente em The Fabelmans, através do fascínio do pequeno Sammy pelo desastre de comboio de The Greatest Show on Earth.
* Tinha escrito Arca de Noé, mas o Pedro Serra, em boa hora, corrigiu-me.
No qual fala da importância do combate pela liberdade contra a tirania, numa óbvia referência ao regime soviético, que abominava — DeMille era famoso pelo seu anti-comunismo. Será que via na figura do Faraó uma réplica de Estaline, que, em 1956, estava morto e havia sido substituído pelo mais moderado Nikita Khrushchev? No entanto, foi buscar Edward G. Robinson, que tinha sido posto «na prateleira» por causa das supostas simpatias comunistas.
Que era Democrata e a favor do controlo das armas de fogo para depois se tornar num Republicano bastante conservador e presidente da NRA (National Rifle Association).
Há um campo/contra-campo em que se percebe que Charlton Heston está num cenário natural e Yul Brenner no estúdio com imagens a serem projectadas por trás.
Ainda por cima, nem sequer aparece na cena. Quem está junto à câmara é Erich von Stroheim.
Depois de abrirem a Arca da Aliança. Da Aliança... Quanto aos filmes bíblicos, aquele que me fascinava na infância era "Quo Vadis". "Ben-Hur" costuma passar na RTP Memória durante a Páscoa.
De repente lembrei-me de uma canção muito tonta da minha adolescência. “Charlton Heston”, dos Stump. Não sei por que carga de água, mas houve qualquer coisa na imagem que escolheste que me lembrou do vídeo-clip, daquela altura do Adam Curry e do Nino Ferretto no início da MTV.