«Fairytale of New York» dos Pogues. Scrooged, de Richard Donner. O episódio especial Blackadder’s Christmas Carol. Todos me acalentam o coração nesta altura do ano.
A edição do Diga-se de Passagem dedicada ao Natal é mais pequena. Não tem a crónica habitual, nem breves impressões ou sugestões. Apenas algumas das coisas de que mais gosto relativas à quadra natalícia.
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Uma fábula em Nova Iorque
A primeira vez que ouvi «Fairytale of New York» até ao fim foi uma desilusão.
A parte em que entra a banda toda — bateria, contrabaixo, bandolim, banjo, concertina, flauta — apoucava a lindíssima introdução ao piano com instrumentos de corda a planar por trás, que conhecia tão bem do genérico inicial de Basquiat, de Julian Schnabel (deveria escrever «de Jeffrey Wright», que faz, arrisco afirmar, uma das interpretações mais espantosas da história recente do cinema).
A canção ouve-se imediatamente antes (ou será depois?) da cena em que a mãe do pequeno Jean-Michel o leva a ver a «Guernica» num museu nova-iorquino. No entanto, não fazia parte do álbum com a banda sonora que comprei na altura da estreia do filme e ouvi vezes sem conta. Foi com ele que descobri, por exemplo, a igualmente esplendorosa «Tom Traubert’s Blues», de Tom Waits.
Só mais tarde, provavelmente quando arranjei o best of dos Pogues, me apaixonei pelo refrão arrebatador de «Fairytale of New York» — «And the boys from the NYPD choir still singing Galway Bay / And the bells are ringing out for Christmas day» — que fazia jus à introdução, começava eu a reconhecer.
Levei muito mais tempo a admirar o agressivo dueto de Shane MacGowan com a malograda Kristy MacColl1. A discussão entre o casal de vagabundos — espécie de Ivone Silva e Camilo de Oliveira da Broadway pré-Giuliani — borrava a brancura da neve com o vómito da bebedeira. Aqueles impropérios eram desnecessariamente canalhas. Lembravam as almas perdidas, solitárias, entristecidas pelas luzes nas ruas, pelos risos das famílias nesta época do ano.
Mas, como noutras coisas, percebi que não há beleza sem fealdade: «Fairytale of New York» não seria tão deslumbrante sem o «cheap lousy faggot» ou a «old slut on junk» — discussões, censuras e recuos de vária ordem motivados por estas palavras, sobretudo em Inglaterra, transformaram-se também eles em tradição de Natal (um tanto enfadonha, diga-se).
Agora, para milhões de pessoas como para mim, «Fairytale of New York» é um clássico à altura de «White Christmas» ou «Stille Nacht, heilige Nacht».
Quando comecei a aprender a tocar piano, copiei os movimentos de alguém no YouTube para conseguir «tocar» a introdução da canção. Gostava de me imaginar como o Shane MacGowan. O cigarro pousado em cima do piano, enquanto me entregava à melodia no teclado.
Entretanto, desaprendi-a (hei-de aprendê-la a sério, talvez a tempo do próximo Natal) e acabei de saber, pouco antes de começar este texto, que MacGowan nem sequer sabia tocar piano, apesar de fingir muito bem no videoclipe da canção.
Fantasmas à solta
Já passam dez anos desde A Very Murray Christmas, especial de Natal da autoria de Bill Murray, produzido pela Netflix e realizado por Sofia Coppola.
A dada altura do programa, creio que lá mais para o fim, o actor põe-se a cantar «Fairytale of New York» na companhia dos amigos David Johansen (vocalista dos New York Dolls), Jenny Lewis, Paul Schaffer, Maya Rudolph (filha de Minnie Riperton, o maior vozeirão da pop dos anos 70) e Jason Schwartzman.
De qualquer forma, Murray, que canta pessimamente (como já se sabia desde Lost in Translation), nem precisava de fazê-lo. Bastava ter protagonizado Scrooged para ser presença assídua do meu Natal.
Antes de ser o actor predilecto de todos os realizadores do cinema independente norte-americano à procura de um homem de meia-idade apático e melancólico (Wes Anderson, Sofia Coppola, Jim Jarmusch), Bill Murray era a grande estrela da comédia, a par de Eddie Murphy (que também «veio» do Saturday Night Live).
Ghostbusters, que Murray protagonizou ao lado de Dan Aykroyd e do falecido Harold Ramis, foi um dos maiores sucessos dos anos 80. Mas, numa daquelas atitudes inexplicáveis que fazem todo o sentido, o actor quase abandonou o cinema por completo (ausentou-se por quatro anos).
Tinha trinta e oito quando regressou com Scrooged, de Richard Donner.
Aparentemente, Murray deu-se mal com o realizador (que tinha a cotação em alta, devido a The Omen, Superman e Goonies). Este não sabia lidar com a sua capacidade de improvisação, as flutuações de humor, as dúvidas em relação ao guião, a vontade de ter todos os irmãos por perto (Joel, Brian e John Murray entram no filme).
E talvez não soubesse explorar até ao fundo o humor verrinoso — contra as estações de televisão, a publicidade, a violência dos filmes de acção, a indústria do Natal —, a prenunciar Gremlins 2: The New Batch2, que Joe Dante realizaria dois anos depois.
Aos nove, dez anos, quando via a minha cassete VHS do S.O.S. Fantasmas (título de Scrooged em Portugal) na casa dos meus avós durante as férias de Natal (e presumo que noutras também) não fazia ideia de nada disto.
Embora me assustasse (sempre fui um bocado caguinchas), achava imensa graça às tropelias de Bill Murray, aos recuos e avanços temporais (já era a minha propensão para as viagens no tempo), e encontrava aconchego no espírito natalício que perpassa pelo filme e que Bill Murray só sabe representar da maneira mais maníaca possível.
No final, o actor quase engole o cenário ao som de «Put A Little Love In Your Heart», depois de pregar a beleza do Natal a todos os espectadores (na rodagem e na sala de cinema), discurso que reza a lenda foi completamente improvisado.
Conto de Natal
Como o título indica, Scrooged é uma adaptação (bastante livre) de A Christmas Carol, de Charles Dickens, o mais famoso dos contos de Natal (e de fantasmas).
Toda a gente sabe a história, quando mais não seja das milhentas versões e adaptações que se reproduzem por aí: Ebenezer Scrooge (que raio de nome), o avarento protagonista, é visitado por três fantasmas (na verdade são quatro, como os mosqueteiros) que lhe mostram o passado, o presente e o futuro. A aterradora experiência transforma-o num homens de negócios gentil e generoso.
É daqueles livros que achava que não precisava de ler — pensava que sabia o enredo de trás para a frente. Ao ler o conto (encontra-se com facilidade na Internet), desenganei-me. Descobri logo uma personagem que desconhecia: Fezziwig, o bondoso patrão do jovem Ebenezer, que aparece num dos flashback.
Em The Muppet Christmas Carol, a personagem é interpretada pelo urso Fozzie, não só porque o nome é parecido, mas também por corresponder à personalidade afável do meu Marreta preferido. De todas as versões de A Christmas Carol que refiro, a dos Marretas é a mais fiel a Dickens. Alguns dos diálogos são retirados ipsis verbis do conto.
Para contrabalançar a cantoria geral, o realizador Brian Henson (que tomou conta dos Marretas depois da morte do pai Jim) foi buscar Michael Caine para fazer de Scrooge. E o actor quis interpretar a personagem com o máximo de seriedade, como se não estivesse a contracenar com bonecos (é praticamente o único humano ali).
A justaposição até poderia ser interessante. O problema é que Caine, quando não está a fazer de patife, resvala com demasiada facilidade para a lamechice (como se pode comprovar, por exemplo, nos Dark Knight de Christopher Nolan) e torna tudo insuportavelmente sentimentalóide.
Blackadder’s Christmas Carol, o especial de Natal da série que deu a fama a Rowan Atkinson3, é bem mais engraçado. Até porque os autores, Richard Curtis e Ben Elton, resolveram espelhar a acção do conto de Dickens.
Este Ebenezer começa por ser uma versão de Scrooge dócil e ingénua, a quem o espírito de Natal faz questão de mostrar a evolução face aos antepassados manipuladores e malévolos. Resultado: torna-se tão mau e cruel quanto os serventes da Rainha Isabel I e do Rei Jorge IV que o antecederam (os protagonistas na segunda e da terceira temporadas de Blackadder).
No final, há um twist genial: Ebenezer Blackadder, que até aí tinha sido enganado por toda a gente, destrata a Rainha Victoria e o Príncipe Alberto, perdendo uma fortuna.
Por hoje é tudo. Não houve revisão da Beatriz Marques Morais, que está de férias.
Boas festas e até ao próximo domingo.
A filha do lendário músico folk inglês Ewan MacColl morreu num estúpido acidente com um barco, no ano 2000. Tinha apenas quarenta e um anos.
Os filmes até têm o incrível John Glover em comum. Glover é daqueles actores com quem é impossível não simpatizar, mesmo quando fazem de vilão secundário. Não deve ser confundido com o mais irritante William Atherton, de Die Hard e Ghostbusters.
É uma pena a imagem de Atkinson que resiste seja a do momo Mr. Bean, mudo e pateta (especialmente nos filmes), e não do sarcástico Blackadder.