A crónica desta semana é sobre a gravação de compilações de canções em cassete, um artefacto de tempos mais analógicos, que as playlists do Spotify vieram substituir. Ainda assim, há toda uma cultura em volta das mixtapes que me interessa explorar.
Infelizmente, não tenho o segredo de como se faz uma mixtape à maneira, nem sequer muita experiência, o que não me impede de alvitrar uns quantos bitaites avulsos.

High Fidelity, de Nick Hornby (que também anda aqui pelo Substack), foi, durante muito tempo, um dos meus livros preferidos. Não uso o presente pois já não o leio há décadas, embora lhe guarde carinho.
Apesar das mudanças (de Londres para Chicago, de Rob Fleming para Rob Gordon), também gosto muito do filme de Stephen Frears, com John Cusack. É uma bela comédia romântica1.
Assim como gosto da série feita há uns anos com Zoë Kravitz2 (filha desse mesmo e de Lisa Bonet, que curiosamente entra na adaptação de Frears).
Mas o sucesso de High Fidelity (sobretudo do livro) teve duas consequências instantâneas:
1. Pôs muito boa gente a imaginar os top 5 mais estapafúrdios (canções com macacos, séries passadas na praia, rodas de bicicleta), como os empregados da Championship Vinyl, a loja de música do protagonista Rob Fleming (aliás Gordon).
2. E mais ou menos as mesmas pessoas a criarem mixtapes para ouvirem no carro (ainda havia leitores de cassetes) e sobretudo para oferecerem a namorados, amores não correspondidos e paixões platónicas, espécie de cartas de amor que muitas vezes não eram entregues ao destinatário.
O que é uma mixtape?
Hoje em dia mixtape tem um significado diferente do que costumava ter. É o nome que se dá aos álbuns não oficiais, sobretudo de músicos de hip-hop em ascensão, nos quais se usam samples sem pedir licença nem pagar direitos e que, portanto, não podem ser lançados oficialmente. E não tem absolutamente nada que ver com cassetes.
Até aos anos 2000, as cassetes «virgens» serviam para gravar álbuns emprestados por amigos. Durante a minha adolescência e inícios da idade adulta, ouvia alguns dos meus discos preferidos nesse formato: Livro, de Caetano Veloso; Siamese Dream, dos Smashing Pumpkins3; ...And Justice for All, dos Metallica (que ficou com o som todo distorcido, porque gravei alto de mais).
Quando era pré-adolescente, também usava as cassetes para fazer gravações estúpidas. Imaginava-me locutor de rádio (costumam dizer-me que tenho «voz de rádio», mas naquela altura ainda não), apresentador de concursos e demais parvoíces.
Tinha outra mania: gravar almoços de família para depois mostrar aos meus pais e aos meus avós. Eles achavam graça às baboseiras que tinham dito durante a refeição. [Felizmente, nunca apanhei nenhuma discussão (não é que houvesse muitas), embora seja esse o mote da peça de teatro que escrevi há pouco tempo.]
E, claro, as cassetes serviam para gravar mixtapes.
Compilações pessoais concebidas por entusiastas e até mesmo por melómanos mais sérios, às vezes eram formadas somente por canções preferidas, outras eram agrupadas por algum tema ou género musical. O «conceito» só tinha de fazer sentido a quem as fazia.
Mas, da mesma maneira que há uma arte para o alinhamento de um álbum (ainda hoje deve existir, apesar de já ninguém ouvir discos do início ao fim4), tinha de haver um pensamento por trás da selecção e arrumação das canções de uma mixtape.
Dou a palavra a Nick Hornby (ou, melhor, a Rob, Fleming ou Gordon):
«To me, making a tape is like writing a letter — there’s a lot of erasing and rethinking and starting again. A good compilation tape, like breaking up, is hard to do. You’ve got to kick off with a corker, to hold the attention, and then you’ve got to up it a notch, or cool it a notch, and you can’t have white music and black music together, unless the white music sounds like black music, and you can’t have two tracks by the same artist side by side, unless you’ve done the whole thing in pairs and… oh, there are loads of rules.»
Uma das canções que Rob usava para começar as suas mixtapes (ou seria quando punha música em festas?) era «Got to Get You Off My Mind», de Solomon Burke. É provavelmente a música mais referida em High Fidelity, o livro (acho que no filme ninguém se lembra dela).
Para mim, era quase mítica. Não a conhecia nem tinha maneira de ouvi-la. Quando li o livro, não havia Spotify, nem YouTube, nem sequer Napster. Também não sabia muito bem quem era Burke (que ainda hoje é pouco conhecido). O único dado de que dispunha era o género de que fazia parte, a soul.
Tinha de imaginá-la como imaginava os filmes a partir dos fotogramas dos livros de João Bénard da Costa, ou como o José Marmeleira sonhava com o som dos Nirvana a olhar para as fotografias de Charles Peterson, ou como o António Tadeia torcia pela Alemanha Ocidental no Mundial de 82 por causa dos cromos da caderneta do Argentina 78.
Só vim a ouvir «Got to Get You Off My Mind» quando encontrei a compilação de Solomon Burke à venda por um preço bastante apetecível numa loja de discos — na Roma Megastore da Avenida da República? Na da Avenida de Roma?
Mais tarde, eu mesmo a incluí numa mixtape. (Já não sei por onde anda, nem que outras canções continha.)
O facilitismo das playlists
Não fiz assim tantas mixtapes. Nem sei se ainda tenho alguma (perdi uma ou outra). Gostava mais da ideia do que de fazê-las, até porque davam trabalho.
Era preciso escolher as canções, ver se casavam bem umas com as outras, se cabiam em cada lado da cassete, que podia ter 45 ou 60 minutos ou até 90 minutos, decidir a ordem, com que canção começar.
Como afirma Fleming/Gordon/Hornby, era vital agarrar o ouvinte à primeira, sobretudo se o objectivo era agradar-lhe, mas as minhas escolhas eram muitas vezes feitas por instinto.
O próprio processo de gravação tinha os seus atritos. Normalmente, usava a aparelhagem grande da sala, que tinha leitor de CD e de cassetes. Primeiro, punha o CD, de seguida começava a gravação da cassete e só depois carregava no play do CD. Tinha de ouvir a canção do princípio ao fim. Tinha de fazer o mesmo para cada uma delas.
De quando em vez, havia enganos, era preciso voltar atrás, corrigir algo. Mas as «dificuldades» não permitiam andar a mexilhar no alinhamento ou alterar canções. o contrário do que acontece com as playlists do Spotify, as quais é possível aperfeiçoar ad nauseam. É tão fácil que toda a gente as faz e ninguém liga nenhuma.
De resto, as playlists são um bicho completamente diferente. São feitas para durar um par de horas ou mais, para fazerem companhia enquanto se estuda ou se escreve5 ou se lava a loiça ou qualquer outra actividade mundana.
As playlists mais ouvidas ou são compostas por música de fancaria ou são mero pano de fundo lo-fi para ouvir desatentamente.
Eu bem tenho tentado fazer playlists armadas em mixtapes, mas não funcionam muito bem. Engendro conceitos porventura demasiado esdrúxulos — música com sons de carros, shoegaze de contrafacção, canções com a palavra «heaven»; tenho tenção de fazer uma só com artistas mortos em desastres de avião — e nunca fico completamente contente.
Sem o trabalho todo necessário para fazer uma mixtape, não tem a mesma graça. Por vezes, mais fácil não significa mais prazeroso.
Uma playlist que queria ser uma mixtape mas que acabou por aceitar que era apenas uma playlist
Gostava de fazer uma mixtape para a Beatriz. Que poderíamos ouvir no rádio de cassetes que ela me ofereceu no ano passado ou talvez no carro. Mas não tenho aparelhagem à mão e a maior parte da música que ouço hoje em dia é no Spotify (e ela também).
Portanto, terá de se contentar com uma playlist de Spotify.
Não sabia se deveria incluir canções de que ela gosta ou canções que ela poderia vir a gostar. Canções que eu lhe apresentei ou as que ela me apresentou? Canções que lembrem os nossos primeiros tempos de namoro ou outras que façam mais sentido agora?
Portanto decidi enfiar tudo e mais alguma coisa. Eis o resultado:
Uma sugestão
O meu primeiro encontro com o crítico (e cineasta) Luc Moullet deu-se com Les sièges de l’Alcazar, o melhor filme sobre críticos de cinema. Guy, o protagonista, cita amiúde um realizador italiano que fora dos círculos cinéfilos (e mesmo dentro) não é muito conhecido: Vittorio Cottafavi.
O que se explica pela adoração que o próprio Moullet nutre pelo italiano — de tal forma que me é impossível ler Cottafavi sem ser com sotaque francês.
No que compraz verdadeiro serviço público, o Gabriel Carvalho traduziu para português este texto belíssimo do francês sobre Una donna libera, um melodrama de Cottafavi.
Ao lerem o texto, vão ter vontade de ver o filme como eu tive. É bem possível que esteja disponível no YouTube sem legendas, o que não é assim tão mau, porque o italiano de Una donna libera é perfeitamente compreensível para falantes de português, mas não garanto nada6.
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão é da Beatriz Marques Morais.
No domingo que vem, é altura das minhas Escolhas do Mês, uma rubrica na qual destaco um filme, um livro e um disco (e mais qualquer coisa) que me acompanharam durante Março.
Tenham uma boa semana. Até ao próximo Diga-se de Passagem.
Hornby «especializou-se» em comédias românticas. Por exemplo, pegou em Fever Pitch, um livro sobre um adepto fanático do Arsenal que vai aos jogos todos da temporada em que o clube de Londres voltou a ser campeão, com um golo de Michael Thomas (que veio a jogar no Benfica ou, melhor, veio a ser assobiado no Estádio da Luz), e escreveu a história de amor entre um adepto fanático do Arsenal que vai aos jogos da temporada em que o clube de Londres voltou a ser campeão, com um golo de Michael Thomas (etc.), e uma professora pouco dada à bola. O resultado é Fever Pitch, o filme realizado por David Evans, com Colin Firth, acabadinho de sair de um lago na adaptação televisiva de Pride and Prejudice, com a qual se tornou no ai-jesus de meio mundo.
Um dos meus maiores feitos foi ter deixado «Soma» passar de um lado para o outro da cassete. Na minha gravação, o crescendo de intensidade da canção é travado pelo final do lado A, recomeçando no mesmo ponto no lado B. Quem conhece «Soma», sabe quão herético é o meu erro.
A minha pequena versão de transtorno obsessivo-compulsivo: quando começo a ouvir um álbum, tenho de o acabar, mesmo que esteja a detestá-lo ou que me apeteça passar para outra coisa. (Vá, dou a mim mesmo uns dez segundos ao início para mudar de ideias logo.)
Escrevo sempre a ouvir música, mas raramente são playlists. O mais das vezes são álbuns (do princípio ao fim, claro). Durante a escrita desta edição do Diga-se de Passagem, ouvi Bouys e Tomboy de Panda Bear (por causa do óptimo concerto da passada quinta-feira em Lisboa, que acabou em beleza com «Slow Motion» tocada por toda a banda), a minha mixtape/playlist de Fevereiro justamente intitulada Música para ouvir em casa até porque é possível que chova, Precious Systems, de MJ Guider, Here in the Pitch, de Jessica Pratt, Electr-O-Pura, dos Yo La Tengo, Ego Death, dos The Internet*.
* Dá para ver o tempo que demoro a escrever esta newsletter. (E com esta consegui superar-me: uma nota de rodapé de uma nota de rodapé.)
Afinal, até existe uma versão com legendas em várias línguas, feita pelo próprio Gabriel.
High Fidelity, obrigada por me lembrares deste filme, que vi no tempo em que ainda se faziam mixtapes :) Vou procurar o livro.
Cada insight deste filme/livro é absolutamente priceless. Ganda peça.