O meu livro preferido
No centenário de José Cardoso Pires, seu autor
Na semana passada era suposto sair a 50.ª edição do Diga-se de Passagem. Não foi assim. Nem foi enviada, nem foi escrita. Andava adoentado e o fim-de-semana foi complicado. É uma desculpa de mau pagador, mas é o que se pode arranjar.
A verdade é que tenho sentido dificuldade em voltar ao ritmo anterior às filmagens do Anda daí, sobretudo quando a vida se interpõe à má fila. Se o tema desta edição não me dissesse tanto, poderia até ter falhado mais uma semana, o que implicaria pôr em risco a própria newsletter.
Mas queria muito homenagear José Cardoso Pires, que «fez» cem anos no passado dia 2 de Outubro, efeméride mais do que suficiente para me «obrigar» a escrever sobre o meu livro preferido (que obviamente é da sua autoria, ou isto não faria qualquer sentido).
Quer dizer, não vou escrever sobre o livro, antes sobre o meu encontro afortunado com ele (serendipitous, como diriam os anglófonos).
(Já agora, esta é mesmo a 50.ª edição do Diga-se de Passagem, que vai procurando sobreviver às minhas preguiça e falta de vontade de escrever.)

O primeiro livro de Cardoso Pires que li foi De Profundis, Valsa Lenta, escrito depois do primeiro AVC que sofreu (o segundo haveria de matá-lo uns anos depois).
Li-o mais ou menos na altura em que foi editado, em 1997 julgo, ainda não tinha eu dezoito anos. Lembro-me pouco e mal do dito, apenas de que gostei bastante. E de que o li nas viagens de comboio entre Lisboa, onde ficava o meu colégio, e Massamá, onde morava. E de que a ressurreição de Cardoso Pires, que conseguiu resgatar-se a si mesmo ao auto-esquecimento, a uma espécie de «morte em vida», me pareceu milagrosa.
A minha simpatia por aquele homem pequeno, vivaço e vivido, e aparentemente imortal, começou aí.
Era daquelas pessoas com quem apetecia beber uma cerveja ao balcão de um daqueles bares à antiga. No British Bar que adorava (no qual os ponteiros do relógio andam para trás e que agora se disfarçou de antro de turistas, enfeitado com luzes por todo o lado, em conformidade com os tempos que vivemos) ou naqueloutro da Avenida de Roma onde Maria, personagem fictícia, encontrou Ruy Belo, poeta verdadeiro, a comer migalhas de pão do tampo.
Mas não fui a correr ler outros livros dele, nem passou logo a ser um dos «meus» escritores (porventura, não tinha nenhum ainda).
Amor à segunda vista
Meses depois (um ano depois?), num dia em que andava à procura de algo para ler, peguei em A República dos Corvos — naquelas edições em capas brancas e duras da Círculo de Leitores —, que os meus pais tinham lá para casa.
É uma colectânea de contos, entre os quais se encontra o famoso Dinossauro Excelentíssimo1, que já tinha saído «a solo» e viria a integrar outras colectâneas. Mas o conto que me mais marcou foi Lulu. Não tanto a história do cão e da mulher à espera do marido militar a batalhar no Ultramar, embora seja bastante boa, quanto a introdução que mencionava um tal Bisonte que Cardoso Pires transplantara de uma leitaria em Marvila para outra, ficcional, no Bairro das Estacas, no seu romance Alexandra Alpha.
Se Lulu repunha a personagem no seu lugar de origem, a referência levou-me para perto da Avenida de Roma, onde a já mencionada Maria, a Mana da Alexandra titular que um dia deu de caras com Ruy Belo, vivia.
Ainda sem ter lido uma página do que já à altura era e jamais deixaria de ser o último romance de Cardoso Pires (De Profundis, Valsa Lenta é outro bicho), intuí que Alexandra Alpha seria importantíssimo para mim.
E para manter as coisas na ordem do inefável, comprei-o na livraria Assírio & Alvim do Cinema King Triplex (sobre o qual já escrevi aqui), antes de uma sessão de Os Mutantes, de Teresa Villaverde, de que também iria gostar muito. Sem saber — não fazia ideia que o Bairro das Estacas, onde a falsa leitaria e a Maria inventada moravam, era ali — estava dentro do cenário do livro (estas coisas não se planeiam, acontecem)2.
Ao ler as primeiras páginas de Alexandra Alpha, na entrada do King, um degrau pouco elevado, enquanto fumava um cigarro (chegava sempre com antecedência ao cinema para poder cumprir os seguintes rituais: ir à livraria, fumar, sentar-me na plateia dez minutos antes de a sessão começar), confirmei a minha intuição: sentia-me em casa, aquele livro era para mim.
Poucas vezes me apaixonei tão completamente e irremediavelmente por um livro.
Diria que bastou o anjo louro a ser abatido nos céus do Rio de Janeiro. Mas se não foi por isso foi pela própria Alexandra Alpha (por quem tive um fraquinho) a falar para o gravador. Ou se não foi por isso foi por Opus Night, que andava sempre com cravos vermelhos na lapela e depois do 25 de Abril jurava a pés juntos que nunca usara outros cravos que não brancos — mas o dito era useiro em brancas provocadas pelos álcoois e não era de fiar. Ou se não foi por isso foi pelo Bar Crocodilo, onde se juntava a intelectualidade lisboeta dos anos 60, aguardando indolentemente pela revolução que tardava (os livros constantemente no prelo, as obras-primas sempre por realizar). Eram tão parecidos ainda com os intelectuais dos anos 90 (eram basicamente os mesmos) e hoje parecem tão anacrónicos. Ainda assim, gostava de visitar o Crocodilo, de frequentá-lo talvez.
O meu livro preferido?
Escrever que o Alexandra Alpha é o meu livro preferido possibilitou o título chamativo desta edição do Diga-se de Passagem, mas será que é mesmo?
Há outros candidatos: Os Filmes da Minha Vida/Os Meus Filmes da Vida, de João Bénard da Costa, Fanny Owen, de Agustina Bessa-Luís, O Monte dos Vendavais, de Emily Brontë.
Para comprovar, teria de relê-lo. Até voltei a Cardoso Pires, A República dos Corvos, Balada da Praia dos Cães (também numa edição branca e dura da Círculo de Leitores que não é minha, é do avô da Beatriz), mas ainda não tive coragem de repegar no meu preferido.
Mete medo reencontrar amores antigos: tememos que não sejam tão bons como imaginámos, que talvez nos tenhamos enganado redondamente.
Já li excertos aqui e ali, mas ler Alexandra Alpha de uma ponta à outra já lá vão mais de vinte anos, quando fiz um trabalho para a faculdade sobre o livro. Não sei onde pára (a parar, só em casa dos meus pais, mas a minha mãe pode tê-lo «arrumado», portanto se calhar já foi reciclado). Gostava e não gostava de poder reler esse trabalho.
Será porventura melhor na minha memória do que na realidade. O livro, por seu turno, é bem provável que seja tão bom como me lembro. E que talvez se mantivesse como o meu preferido.
Umas sugestões
Como me baldei a semana passada e ao Diga-se de Passagem e, consequentemente, às sugestões, deixo três canções/músicos que me têm acompanhado nos últimos tempos.
Já tinha ouvido os Josef K. e gostara, mas os Orange Juice mantinham-se a minha banda de eleição da escocesa Postcard (como se não houvesse lugar a mais nenhuma). Só que o YouTube recomendou-me esta «Heaven Sent» tocada no programa do John Peel e tive de me render (aos Josef K. e ao YouTube, que sempre tem alguma coisa boa). Que canção!
Quanto aos The Wake, não sei quem mos recomendou (terá sido o Nuno Babo?), mas só tenho de agradecer-lhe. O álbum Here Comes Everybody é excelente do princípio ao fim, mas destaco esta prestação ao vivo de «Talk About the Past», que o YouTube me apresentou quando pesquisei pela banda (o canal que publicou o vídeo tem outras preciosidades).
Também tenho ouvido (e continuarei a ouvir) Essex Honey, o novo álbum de Dev Hynes, vulgo Blood Orange, músico de que gosto tanto. Mais do que um regresso à forma, parece mesmo um dos seus melhores álbuns. Mistura os sintetizadores prefabsproutianos a um violoncelo cheio de reverberação à la Arthur Russell e a guitarras sonhadoras (a deste «The Field» foi «roubada» ao grande Vini Reilly).
É um prazer reencontrar a música de Hynes: o soberbo Freetown Sound foi uma das minhas companhias durante uma viagem à Escandinávia em 2016. Acho que associarei sempre as canções desse álbum ao comboio entre Malmö e Estocolmo.
Por hoje é tudo. As palavras são minhas. A revisão, mais uma vez, não é da Beatriz Marques Morais, mas as coisas hão-de voltar aos eixos (quando eu conseguir escrever isto sem ser em cima da hora).
No domingo que vem, se tudo correr bem e não me der outro amoque, sairá finalmente nova entrevista (sei que já a prometi mais do que uma vez, mas acho que é desta).
Tenham uma boa semana. Até ao próximo Diga-se de Passagem.
Constatei, ao relê-lo agora, que continua soberbo. Também dei de caras com um artefacto curioso: um post-it com o alinhamento das canções de As Quatro Estações, da Legião Urbana, que ouvia obsessivamente nesses tempos, a servir de marcador. Há uns tempos, já não sei em que livro, encontrei outro post-it, com o onze do Benfica da altura da primeira passagem de José Mourinho, com Maniche numa das alas, Diogo Luís na lateral esquerda e João Tomás na linha da frente.
Soube mais tarde que o próprio Cardoso Pires viveu ali com a família. E eu filmei lá uma cena importantíssima do Anda daí este Verão.


É sempre bom ler-tem, com ou sem atraso. Obrigada por esta partilha, mas agora quero saber o que achas de O Monte dos Vendavais, uma vez que é um candidato a preferido da vida, e eu sou tão obcecada por ele que faço coleção de edições diferentes. Portanto, fica aqui o meu desafio para que escreves sobre o livro e a tua relação com ele. E até breve!