Hammett, o filme e os filmes
Ou como o autor de «The Maltese Falcon» teve mais sorte com as adaptações dos seus livros do que com o filme com o seu nome.
Ao contrário do que o título possa sugerir, Hammett não é uma biopic de Dashiell Hammett. É uma adaptação de um romance de Joe Gores, no qual o famoso autor de policiais hard-boiled protagoniza uma intriga rebuscada e complicada, semelhante à de outras histórias de detectives, incluindo as do próprio — ou seja, é mesmo Hammett (que toda a gente conhece pelo nome próprio, Sam) quem dirige a investigação1.
O enredo2 começa quando o ex-detective privado (Hammett foi agente da Pinkerton) em vias de se tornar escritor de sucesso e já alcoólico inveterado (tudo biograficamente correcto) recebe a visita de um detective «a sério», modelo para o herói das histórias que publicava na revista Black Mask com relativo êxito (o filme apanha o autor antes dos elogios de Malraux e Gide, da chamada a Hollywood, de Lillian Hellman, dos posteriores problemas com o McCarthyism; isso viria anos depois).
Ninguém menciona qual é a personagem modelada no dito detective (interpretado por Peter Boyle), mas não é difícil adivinhar de que se trata de Continental Op, a quem o escritor nunca deu nome de gente.
Um dos aspectos mais curiosos do filme (perdoem-me os spoilers) é o facto de a personagem anónima se virar contra o autor (e vice-versa). No fim, Hammett não o mata literalmente, mas é como se o tivesse feito figurativamente — na vida real, Continental Op foi substituído por Sam Spade e Nick Charles, protagonistas dos romances mais conhecidos do autor. Esta ideia nunca é explorada por nenhum dos envolvidos na realização do filme: Wim Wenders e Francis Ford Coppola.
Hammett está longe de ser um grande filme. Teve demasiadas mãozinhas envolvidas para poder sê-lo — reza a lenda que, apesar de ter sido assinado por Wenders, quem realizou o filme foi Coppola, sócio-fundador da American Zoetrope (na altura, Zoetrope Studios), que o produziu. Segundo o cineasta alemão, não é verdade: se o filme foi quase totalmente refilmado, a pedido de Coppola (que não estava contente com a versão apresentada), Wenders nunca deixou que o outro tomasse completamente conta das operações (mas imagina-se a figura rotunda do italo-americano sempre a espreitar-lhe por cima do ombro)3.
Além de, como Vincent Canby escreveu à altura da estreia, ser demasiado indeciso sobre o que quer ser: fica a meio caminho entre a paródia à Mel Brooks e o neo-noir à Chinatown.
No entanto, até se vê bem, gerando simpatia por um trio de razões:
1. Os cenários quase inteiramente de estúdio (aparentemente, antes da refilmagem havia muito mais cena em exteriores) fazem lembrar o feérico One from the Heart (cuja artificialidade vibrante só encontra rival no igualmente fabuloso New York, New York, de Martin Scorsese), realizado por Francis Ford Coppola nesse mesmo ano de 1982.
2. Frederic Forrest, habituée de Coppola (a tal «lenda» não existe por acaso), encarna Dashiell Hammett, com quem até tem semelhanças físicas, com a suavidade habitual. (É pena que outros realizadores não tenham querido, ou sabido, aproveitar a gentileza de Forrest.)
3. Algumas estrelas do antigamente como Sylvia Sidney vão aparecendo aqui e ali para dar legitimidade à empreitada, embora Elisha Cook Jr. — eterna carne para canhão dos vilões e dos heróis do film noir, um daqueles rostos que toda a gente reconhece, mas não sabe nomear — tenha um papel muito pobrezinho. Até Samuel Fuller comparece. (Mas em que filmes é que Fuller não entra?)
As adaptações de Hammett
Dashiell Hammett teve bastante mais sorte com as adaptações dos seus livros — é ela por ela com Raymond Chandler, cuja obra também deu origem a óptimos filmes.
The Maltese Falcon, longa-metragem de estreia de John Huston e exemplo perfeito de film noir, ainda hoje é considerado dos melhores filmes de sempre4. De facto, não faltam motivos de interesse: os esgares de Humphrey Bogart, com que este se diverte enquanto observa os outros actores a representarem; o próprio Bogart, que se firmava finalmente como grande estrela de Hollywood, depois de anos a fazer pequenos papéis; a melhor dupla de vilões, Peter Lorre e Sydney Greenstreet, secundários recorrentes de Bogart (em Casablanca, do ano seguinte, lá estão eles outra vez); o criminoso patético interpretado pelo já referido Elisha Cook Jr.; a crueldade e o cinismo do romance de Hammett, que tem um final bastante desalmado.
The Thin Man é um bicho diferente. Realizado por W. S. Van Dyke em 1934, é mais screwball comedy do que film noir (de que tem muito pouco). O casal de protagonistas Nick e Nora Charles passa a vida a beber cocktails, a socializar com pessoas interessantes, e a lançar piadas mais ou menos sexuais um ao outro. O mistério (que deixa uns quantos cadáveres por terra) é quase um empecilho aos chistosos diálogos entre William Powell e Myrna Loy, cheios de subentendidos e duplos sentidos («Would you serve the nuts?»), e às cenas destes dois com Asta, o Terrier da família.
A receita teve tanto sucesso que originou uma série de filmes com o casal Charles, que já não tinham nada que ver com Dashiell Hammmett (nem sei se recebeu alguns trocos), apesar de conservarem o Thin Man no título (o que também não faz qualquer sentido, o «thin man» é o homem desaparecido do primeiro filme).
O cão de The Thin Man merece um parágrafo só para si. Segundo Myrna Loy, Skippy (que encarnou Asta) era tratado como um actor do Método: não podia ser abordado pelos outros actores, pois podia desconcentrar-se e falhar as suas deixas. Os treinadores — a actriz do cinema mudo Gale Henry e o marido Henry East — não o permitiam. Valia a pena. Skippy é (e meço bem as minhas palavras) um actor fabuloso. Veja-se o timing, a forma como interage com o que ocorre à sua volta, com os outros intérpretes. Metade do humor do filme deve-se a ele: a maneira como se esconde mal o perigo se acerca, como tapa os olhos nas cenas escaldantes entre os donos.
Skippy voltaria a ser brilhante em Bringing Up Baby, obra-prima de Howard Hawks, em que luta com leopardos, esconde ossos de brontossauros e atura Cary Grant e Katharine Hepburn.
Recomendações da semana
The Chameleons - Script of the Bridge
Os Chameleons são daquelas bandas de que as pessoas se lembram quando falam dos Interpol (embora associem mais os norte-americanos aos Joy Division, provavelmente à conta da voz grave de Paul Banks, que tem qualquer coisa de Ian Curtis). Após ouvir finalmente os Chameleons com atenção (sobretudo o primeiro álbum Script of the Bridge), percebo porquê: os Interpol roubaram a sonoridade aos ingleses. Fizeram-no descarada e declaradamente (nunca o omitiram; também seria inútil).
O que eu adorava nos Interpol deve-se quase exclusivamente aos Chameleons: a grandiloquência da voz e das letras, as guitarras cerradas (influenciadas por The Edge dos U2), em permanente jogo uma com a outra, a potência da secção rítmica.
Já não ouço regularmente os Interpol há anos (há mais de uma década), mas sou capaz de ouvir «Up the Down Escalator» repetidamente, sem parar. Aquela bridge, ou ponte, ou lá como é que se chama aquela secção entre os dois refrões finais — na qual Mark Burgess canta «Eden/There's no Eden anyway» —, nunca deixará de me provocar arrepios.
Julieta, de Pedro Almodóvar
Acontece com muitos cineastas (com muitos artistas?): quando estão na mó de cima, toda a gente os adora, ninguém se cansa de falar deles; de repente, não se sabe bem porquê, deixam de despertar entusiasmo, quando muito causam um encolher de ombros enfastiado.
Um dos casos mais evidentes deste fenómeno é Pedro Almodóvar (que acaba de ganhar o Leão de Ouro em Veneza, com The Room Next Door). Até Dolor y gloria, de 2019, o suposto "regresso à forma", parecia que tinha morrido. Depois dos grandes sucessos de Hable con ella e Todo sobre mi madre, as pessoas já não podiam ver os filmes deles à frente.
Isto, apesar de ter continuado a fazer bons, quando não excelentes filmes: La mala educación, Volver, até o divertido Los amantes pasajeros. A única obra falhada desse período é La piel que habito, que, mesmo assim, vale a pena pelo enredo estrambólico.
Mas o filme que sofreu mais com esta situação foi Julieta. Numa lista da Indiewire com os melhores filmes do realizador espanhol, figura em 15.º, o último lugar da lista (é verdade que Almodóvar tem 22 filmes, mas mesmo assim).
Uma injustiça para aquele que é o melhor guião de Almodóvar (construído a partir de três contos de Alice Munro). O mais hitchcockiano dos seus filmes (até tem uma Mrs. Danvers como Rebecca). Aquele que tem a melhor transição com cabelos molhados na história do cinema.
Aquele que é, a par de Mujeres al borde de un ataque de nervios, o seu melhor filme.
Poeta Chileno, de Alejandro Zambra
Há uma altura em que já temos a idade dos jogadores de futebol, depois deixamos de ter, e começa a haver treinadores bem mais novos do que nós. Às tantas, se fôssemos árbitros, estávamos prontos para a reforma.
Para mim, chegou a altura de ter a idade dos protagonistas de autores de meia-idade. Já não leio os livros com aquela distância de outrora, com aquela arrogância da juventude, que se acha acima do que está para vir.
E não preciso ser um poeta chileno, nem ter vivido aquela história, para me identificar com o protagonista. Reconheço-lhe características, traços geracionais.
Mas O Poeta Chileno não é bom só porque me lembra de mim (embora seja reconfortante ver-me de alguma forma reflectido). É bom, porque Alejandro Zambra escreve muitíssimo bem, porque tem uma “voz” espirituosa, cativante (que dá prazer acompanhar, como a de um amigo), porque consegue captar a natureza humana, através dos momentos mais corriqueiros. É bom, apesar da capa feiosa da versão da Elsinore.5
Por hoje é tudo. Até para a semana.
Repórter X, de José Nascimento, fez a mesma coisa com a figura de Reinaldo Ferreira: não se baseia em qualquer obra sua; pelo contrário, põe o autor no meio de um enredo que poderia ter sido imaginado por si.
Bastante compreensível, o que se calhar é um defeito num filme armado ao noir. Nunca ninguém vai perceber o que acontece em The Big Sleep, de Howard Hawks, por exemplo.
Quando Wim Wenders quis lançar o seu director’s cut, descobriu que a «sua versão» tinha sido completamente destruída.
Esta não foi a primeira adaptação de The Maltese Falcon. Em 1931, no período prévio ao Código Hays, Roy Del Ruth realizou outra versão do romance, que depressa caiu no esquecimento, devido ao sucesso da segunda adaptação e talvez aos excessos que o Código deixou de permitir.
Ao ler O Poeta Chileno, percebi que confundo Roberto Bolaño com Julio Cortázar, como quando era criança confundia David Bowie e Rod Stewart. Eram os dois cantores ingleses louros como estes dois são escritores sul-americanos que já morreram. Talvez se ler um livro de um deles (tenho para aí na estante), deixe de o fazer. Ou talvez baste a vergonha que senti quando me dei conta da confusão (que até me fez deixar isto numa nota de rodapé).